Archive for março 2012

Legião Urbana, Jejum e Pecado


Subsídios para a quaresma

Eu penso que ficar procurando sentido em letras de música é um pouco como olhar desenho em nuvens. Cada um acaba achando o que quer e muitas vezes com mais propriedade que o autor, rs. Mas como minha irmã artista diz que o espetáculo vale pela impressão que ele nos causa, bem, aí segundo esse conceito posso falar do desenho que eu vi nas nuvens. Renato Russo não foi propriamente um exemplo de cristão, mas acho interessante ele ter em diversas músicas tocado em alguns temas profundamente católicos, a ponto de saber, inclusive, cantar o Cordeiro.

Não há como negar o impacto da Legião nos jovens da década de 80 e começo da década de 90 e mesmo ainda hoje, depois da morte de Renato Russo. Ele conseguiu ser a voz de uma juventude brasileira metropolitana que estava começando a se formar, conseguiu expressar bem seus dramas existenciais. E convenhamos, com bastante propriedade: “somos filhos da revolução, somos burgueses sem religião, somos o futuro da nação, geração Coca-Cola”. Pois é, o futuro chegou e Renato acertou.

Para mim, algumas letras tocam no ideal de leveza e simplicidade que tenho como profundamente cristãos: a alegria do convívio, a fidelidade, a cumplicidade. Cito por exemplo as letras de Descobrimento do Brasil, Giz, O Mundo Anda Tão Complicado e outras que no final reservam uma ideia de redenção como Perfeição. Claro, outras tantas não passam nem perto desses temas.

Já em Monte Castelo, o tema cristão é evidente, trata-se de Coríntios 13 cantado. Não se pode dizer que Renato Russo fosse católico – na verdade desconheço sua posição religiosa – e nem que ele cantasse como um cristão convicto. As músicas carregam muitas vezes um tom melancólico, bem distante da convicção serena e alegre dos que verdadeiramente creem. Mas tocam, ainda que na superfície, em importantes temas católicos.

De qualquer maneira, é interessante o fato de que os ideais cristãos estejam ali. Lembro-me de quando li o testemunho de Elizabeth Dodd, uma jovem wicka que se converteu recentemente ao catolicismo (1), ela mencionava que uma das coisas que atraiu sua curiosidade para o catolicismo era o fato de que em filmes de terror feitos em países não-católicos, os exorcistas ainda assim eram todos padres. Como se no imaginário coletivo, para se referir a uma luta entre o bem e o mau por excelência fosse necessário um demônio medieval e um padre paramentado.

E assim me chama a atenção o fato de temas católicos terem aparecido também em músicas populares. Os símbolos católicos e a história da Igreja, apesar de enormemente deturpada (o que não quer dizer que não existam graves erros dos católicos ao longo da história) ainda exerce uma forte influência cultural, mesmo que velada.

E há uma música em particular da Legião Urbana que gosto muito, Metal contra as Nuvens que acho que permite, com as reservas já colocadas acima, um paralelo entre a letra e um aspecto da vida na fé. Metal contra as Nuvens é pouco conhecida fora do círculo dos fãs da Legião, é muito longa, tem 11 minutos. Talvez valha a pena conferi-la aqui: http://www.youtube.com/watch?v=40A4fhCTSqs para poder acompanhar o resto deste post.

A música fala de um cavaleiro medieval cansado que foi enganado e se sente desiludido. A música começa com uma melodia melancólica, passa para um momento de ira em que o personagem se dirige com ódio àqueles que o traíram, depois há um momento de drama em que o personagem como que recupera sua energia para enfrentar novamente seus traidores e termina em um tom leve, alegre e esperançoso.

O que me atrai nesta música é o fato de poder, pelo menos penso assim – lembremos que aqui estamos falando do meu desenho nas nuvens – associá-la à ascese cristã, à luta contra o pecado, este mau, esta gravidade que sempre nos arrasta para baixo. E aqui é interessante pensar no pecado não tanto quanto crime, mas mais como enfermidade, doença. Um mau que se não for curado leva à nossa autodestruição e a destruição de nossos próximos.

O mau é um bem aparente já dizia Santo Agostinho e nosso primeiro ato quando pecamos é cair em uma profunda ilusão.

O filme “As Crônicas de Nárnia”, na verdade uma excelente catequese católica, mostra bem este ponto quando apresenta um dos personagens, Edmundo, traindo seus amigos em troca de um manjar que na verdade não passava de um pedaço de neve. De fato, o pecado, o mau, é apenas um pedaço de neve que se derrete ao sol, prazer passageiro que tomamos como se fosse um manjar.

E podemos fazer um paralelo que é bastante polêmico para a sociedade contemporânea, a relação entre sexo e pecado.  Não ignoro que muitas pessoas, mesmo vivendo fora da castidade e do casamento cristão caminham na direção de uma relação de entrega plena e de fidelidade, como uma espécie de “casamento de desejo”, para fazer um paralelo com o “batismo de desejo” de São Tomás, pessoas que desconhecendo o ideal do casamento cristão, o vivem quase que plenamente, embora sem saber.

Mas também não ignoro que esses casos são raros e que muitos dos que querem se classificar na condição acima muitas vezes estão apenas procurando justificativas para seus erros, e aqui falo somente para católicos praticantes.

Por que o sexo fora das muralhas do casamento seria pecado, se é apenas prazer e cumplicidade? Mas na nossa sociedade extremamente erotizada não é justo perguntar também se em muitos casos (e não em todos é verdade) sob a aparência de cumplicidade não não há apenas falta de autodomínio, e o sexo é assim  não uma expressão da vontade, mas apenas da fraqueza de ceder a um instinto? Ou ainda a ausência de comprometimento? Pois se há amor, por que não pode ser manifestado com um gesto público e solene, como merece um compromisso de entrega mútua?

Claro, sempre há exceções, como aqueles que caminham nessa direção, mas ainda de forma imperfeita ou fraca. Ou ainda traumas e marcas que a vida deixa que levam algumas pessoas a desprezar ou mesmo a ver como excessivamente desafiadora a virgindade. Tão pouco pretendo me colocar como referência nesse assunto. Quero sim tratar de um tema que está no centro de nossa vida e que é importante para nossa felicidade. Nesta terra e na futura.

Mas se não há essa entrega, não há compromisso, o que há então? Dois seres humanos usufruindo dos corpos um do outro por puro prazer (quer sejam casados ou não)? Será que a medida de todas as coisas deve ser o sexo? Ou o amor, que vai infinitamente além deste? E o que será quando a vida me pedir autodomínio, quando chegar a doença, a velhice ou as dificuldades do dia-a-dia? Um amor que se confundiu com vício será capaz e sobreviver a estas provas?

Mais cedo ou mais tarde este lapso, se não remediado, irá cobrar o seu preço, basta ver como nossa cidade está cheia de pessoas confusas, afetivamente imaturas e infelizes, embora sexualmente muito ativas.

Obviamente não basta controlar-se sexualmente para ser considerado santo, “há muitas almas virgens no inferno” já dizia um certo santo, Santo Agostinho acho. Dizia ainda que se podem achar muitas almas que não foram castas no Céu, mas com certeza nenhuma orgulhosa. E o orgulho é, por sua vez, outra ilusão.

Se não nos confrontamos honestamente com o ideal cristão e a vida dos santos, por medo de perder uma suposta autonomia intelectual em que eu mesmo faço meus critérios, e aqui falo somente aos católicos praticantes, enganando-nos a nós mesmos, corremos o risco de ir para o inferno por não termos tido coragem de olhar para o Céu. A verdadeira autonomia é procurar respostas e quando encontra-las viver de acordo com elas. Há quem queira ficar eternamente em dúvida por medo do que as respostas possam lhe pedir.  Mas é a verdade que nos libertará. E Deus é bom, está é a verdade.

A humildade é a primeira das virtudes. Reconheçamos nossos próprios erros ao invés de justifica-los. Pois, e esta é uma das coisas mais belas da fé católica, estamos todos a apenas uma confissão do Paraíso. Não se pedem atos heroicos, e nem um grande sacrifício, nem mesmo uma mudança de vida perfeita e instantânea – o que seria desumano, se pede apenas o desejo sincero de recomeçar.

Bem, voltando à música.

O refrão de Metal contra as Nuvens “Eu sou metal/ raio, relâmpago e trovão/ Eu sou metal/ Eu sou o ouro em seu brasão”, é uma bonita autoafirmação de um homem que diante de uma situação adversa se lembra da sua própria dignidade. E aqui também vejo um belo paralelo entre a música e nossa ascese de cada dia para lutar contra nossos próprios pecados. É preciso recuperar aquele brio que tinham os primeiros cristãos e que têm os santos. Diante do pecado que quer nos rebaixar devemos lembrar que somos uma raça de “sacerdotes, profetas e reis”, de homens livres, que não aceitam ser escravos.

Quantas mulheres hoje aceitam que todos os homens são infiéis e que a vida é assim mesmo? Quantos homens aceitam passivamente o jogo político e de interesses em cada local de trabalho deste país e aceitam isso como natural? Não podemos aceitar viver assim.

E diante dessas mentiras sobre a natureza humana, apresentada cada vez mais como mais decaída, devemos erguer nossa voz interior e nos lembrar da dignidade de Nosso Pai, do que somos realmente feitos e a que preço fomos salvos. Eu não posso aceitar que os casais briguem de vez em quando e isso seja normal. Não posso aceitar que me sinta atraído por todas as mulheres que passem na rua e considerar isso normal (desde que meus pensamentos não venham a público), não posso aceitar deixar que um colega de trabalho seja injustiçado porque essas coisas são assim mesmo...

Tendo consciência que de fato existe um Deus, e que Ele se fez homem em Jesus Cristo Nosso Senhor, quero amar minha esposa de todo coração e ser paciente e sereno, quero ser leal aos meus amigos, corajoso, destemido e quero ser casto no mais íntimo dos meus pensamentos. Sabendo que o homem é de tal maneira amado por Deus e que por causa dEle sua dignidade é infinita, não podemos aceitar ser uma criatura caprichosa, frívola e inconstante. Devemos nos revoltar contra essas afirmações.

E é importante lembrar que o desejo de perfeição, de santidade, não significa santidade. E o desejo de perfeição deve crescer na mesma medida em que crescemos em misericórdia para com os outros e para conosco mesmos. Do contrário, apontando na direção do amor seríamos carrascos uns dos outros, o que é totalmente absurdo para a lógica de um Deus que morreu por amor a nós, quando estávamos todos (e ainda estamos) no pecado, quando nem sequer o conhecíamos. Morreu apenas pela vaga possibilidade de que fôssemos salvos, morreu por amor somente, sem garantias de que seria amado.

E voltando à música novamente, outro verso que acho particularmente forte é quando na parte mais dramática da música o personagem canta “não me entrego sem lutar/ tenho ainda coração/ não aprendi a me render/ que caia o inimigo então”. O cristão não é um homem passivo. Tão pouco um submisso, ou pior ainda, um desiludido melancólico. É um violento (no sentido evangélico do termo, claro), um revolucionário (no sentido deste texto, claro de novo, rs), alguém que não se submete às leis deste mundo, que tendo mil vezes caído no mesmo pecado, mil e uma vezes se levantará, pois não aceita, não se rende. Não se submete às leis do pecado, embora possa muitas vezes ter sido feito cativo por elas.

Eu me lembro das muitas vezes em que me vi prostrado pelos meus próprios pecados. Lembro que muitas vezes a única coisa que me movia adiante era não aceitar que a história terminasse assim. Como alguém que viu o Senhor pode agir tão mal assim?  Me perguntei isso muitas vezes. Tem sido um longo aprendizado. Vejo na vida de muitas pessoas e na minha também que Deus tem vencido, que não nos abandona à nossa própria sorte e que ao menor sinal de perseverança Ele nos cumula de todas as dádivas e bênçãos, o esforço que Ele nos pede é infinitamente pequeno em relação ao bem que nos dá.

Mas o que gostaria de ter ouvido ainda adolescente é que não se deve ter medo de lutar contra o pecado. O pecado é um assassino, um estuprador, um mentiroso que não nos traz bem nenhum e é preciso voar sem medo e ir de corpo inteiro ao seu embate, com coragem, certos da vitória, com a espada em riste, pois a única possibilidade de derrota que temos nesta batalha é não lutar.

E concluindo com a música:

“E nossa história não ficará, pelo avesso assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas para contar. E até lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer, não olhe para trás, apenas começamos. O mundo começa agora. Apenas começamos”.

Posted in | 2 Comments