Subsídios para a
quaresma
Eu penso que ficar procurando
sentido em letras de música é um pouco como olhar desenho em nuvens. Cada um
acaba achando o que quer e muitas vezes com mais propriedade que o autor, rs.
Mas como minha irmã artista diz que o espetáculo vale pela impressão que ele nos
causa, bem, aí segundo esse conceito posso falar do desenho que eu vi nas
nuvens. Renato Russo não foi propriamente um exemplo de cristão, mas acho
interessante ele ter em diversas músicas tocado em alguns temas profundamente
católicos, a ponto de saber, inclusive, cantar o Cordeiro.
Não há como negar o impacto da Legião
nos jovens da década de 80 e começo da década de 90 e mesmo ainda hoje, depois
da morte de Renato Russo. Ele conseguiu ser a voz de uma juventude brasileira
metropolitana que estava começando a se formar, conseguiu expressar bem seus
dramas existenciais. E convenhamos, com bastante propriedade: “somos filhos da
revolução, somos burgueses sem religião, somos o futuro da nação, geração
Coca-Cola”. Pois é, o futuro chegou e Renato acertou.
Para mim, algumas letras tocam no
ideal de leveza e simplicidade que tenho como profundamente cristãos: a alegria
do convívio, a fidelidade, a cumplicidade. Cito por exemplo as letras de
Descobrimento do Brasil, Giz, O Mundo Anda Tão Complicado e outras que no final
reservam uma ideia de redenção como Perfeição. Claro, outras tantas não passam
nem perto desses temas.
Já em Monte Castelo, o tema
cristão é evidente, trata-se de Coríntios 13 cantado. Não se pode dizer que
Renato Russo fosse católico – na verdade desconheço sua posição religiosa – e
nem que ele cantasse como um cristão convicto. As músicas carregam muitas vezes
um tom melancólico, bem distante da convicção serena e alegre dos que
verdadeiramente creem. Mas tocam, ainda que na superfície, em importantes temas
católicos.
De qualquer maneira, é
interessante o fato de que os ideais cristãos estejam ali. Lembro-me de quando
li o testemunho de Elizabeth Dodd, uma jovem wicka que se converteu
recentemente ao catolicismo (1), ela mencionava que uma das coisas que atraiu
sua curiosidade para o catolicismo era o fato de que em filmes de terror feitos
em países não-católicos, os exorcistas ainda assim eram todos padres. Como se
no imaginário coletivo, para se referir a uma luta entre o bem e o mau por
excelência fosse necessário um demônio medieval e um padre paramentado.
E assim me chama a atenção o fato
de temas católicos terem aparecido também em músicas populares. Os símbolos católicos
e a história da Igreja, apesar de enormemente deturpada (o que não quer dizer
que não existam graves erros dos católicos ao longo da história) ainda exerce
uma forte influência cultural, mesmo que velada.
E há uma música em particular da Legião
Urbana que gosto muito, Metal contra as Nuvens que acho que permite, com as
reservas já colocadas acima, um paralelo entre a letra e um aspecto da vida na
fé. Metal contra as Nuvens é pouco conhecida fora do círculo dos fãs da Legião,
é muito longa, tem 11 minutos. Talvez valha a pena conferi-la aqui: http://www.youtube.com/watch?v=40A4fhCTSqs
para poder acompanhar o resto deste post.
A música fala de um cavaleiro
medieval cansado que foi enganado e se sente desiludido. A música começa com
uma melodia melancólica, passa para um momento de ira em que o personagem se
dirige com ódio àqueles que o traíram, depois há um momento de drama em que o
personagem como que recupera sua energia para enfrentar novamente seus traidores
e termina em um tom leve, alegre e esperançoso.
O que me atrai nesta música é o
fato de poder, pelo menos penso assim – lembremos que aqui estamos falando do
meu desenho nas nuvens – associá-la à ascese cristã, à luta contra o pecado,
este mau, esta gravidade que sempre nos arrasta para baixo. E aqui é
interessante pensar no pecado não tanto quanto crime, mas mais como
enfermidade, doença. Um mau que se não for curado leva à nossa autodestruição e a
destruição de nossos próximos.
O mau é um bem aparente já dizia
Santo Agostinho e nosso primeiro ato quando pecamos é cair em uma profunda ilusão.
O filme “As Crônicas de Nárnia”,
na verdade uma excelente catequese católica, mostra bem este ponto quando
apresenta um dos personagens, Edmundo, traindo seus amigos em troca de um
manjar que na verdade não passava de um pedaço de neve. De fato, o pecado, o mau,
é apenas um pedaço de neve que se derrete ao sol, prazer passageiro que tomamos
como se fosse um manjar.
E podemos fazer um paralelo que é
bastante polêmico para a sociedade contemporânea, a relação entre sexo e pecado.
Não ignoro que muitas pessoas, mesmo
vivendo fora da castidade e do casamento cristão caminham na direção de uma relação
de entrega plena e de fidelidade, como uma espécie de “casamento de desejo”,
para fazer um paralelo com o “batismo de desejo” de São Tomás, pessoas que
desconhecendo o ideal do casamento cristão, o vivem quase que plenamente,
embora sem saber.
Mas também não ignoro que esses
casos são raros e que muitos dos que querem se classificar na condição acima
muitas vezes estão apenas procurando justificativas para seus erros, e aqui
falo somente para católicos praticantes.
Por que o sexo fora das muralhas
do casamento seria pecado, se é apenas prazer e cumplicidade? Mas na nossa
sociedade extremamente erotizada não é justo perguntar também se em muitos
casos (e não em todos é verdade) sob a aparência de cumplicidade não não há
apenas falta de autodomínio, e o sexo é assim não uma expressão da vontade, mas apenas da
fraqueza de ceder a um instinto? Ou ainda a ausência de comprometimento? Pois se
há amor, por que não pode ser manifestado com um gesto público e solene, como
merece um compromisso de entrega mútua?
Claro, sempre há exceções, como
aqueles que caminham nessa direção, mas ainda de forma imperfeita ou fraca. Ou
ainda traumas e marcas que a vida deixa que levam algumas pessoas a desprezar
ou mesmo a ver como excessivamente desafiadora a virgindade. Tão pouco pretendo
me colocar como referência nesse assunto. Quero sim tratar de um tema que está
no centro de nossa vida e que é importante para nossa felicidade. Nesta terra e
na futura.
Mas se não há essa entrega, não
há compromisso, o que há então? Dois seres humanos usufruindo dos corpos um do
outro por puro prazer (quer sejam casados ou não)? Será que a medida de todas
as coisas deve ser o sexo? Ou o amor, que vai infinitamente além deste? E o que
será quando a vida me pedir autodomínio, quando chegar a doença, a velhice ou
as dificuldades do dia-a-dia? Um amor que se confundiu com vício será capaz e
sobreviver a estas provas?
Mais cedo ou mais tarde este
lapso, se não remediado, irá cobrar o seu preço, basta ver como nossa cidade
está cheia de pessoas confusas, afetivamente imaturas e infelizes, embora
sexualmente muito ativas.
Obviamente não basta controlar-se
sexualmente para ser considerado santo, “há muitas almas virgens no inferno” já
dizia um certo santo, Santo Agostinho acho. Dizia ainda que se podem achar
muitas almas que não foram castas no Céu, mas com certeza nenhuma orgulhosa. E
o orgulho é, por sua vez, outra ilusão.
Se não nos confrontamos
honestamente com o ideal cristão e a vida dos santos, por medo de perder uma
suposta autonomia intelectual em que eu mesmo faço meus critérios, e aqui falo somente
aos católicos praticantes, enganando-nos a nós mesmos, corremos o risco de ir
para o inferno por não termos tido coragem de olhar para o Céu. A verdadeira
autonomia é procurar respostas e quando encontra-las viver de acordo com elas.
Há quem queira ficar eternamente em dúvida por medo do que as respostas possam
lhe pedir. Mas é a verdade que nos
libertará. E Deus é bom, está é a verdade.
A humildade é a primeira das
virtudes. Reconheçamos nossos próprios erros ao invés de justifica-los. Pois, e
esta é uma das coisas mais belas da fé católica, estamos todos a apenas uma
confissão do Paraíso. Não se pedem atos heroicos, e nem um grande sacrifício,
nem mesmo uma mudança de vida perfeita e instantânea – o que seria desumano, se
pede apenas o desejo sincero de recomeçar.
Bem, voltando à música.
O refrão de Metal contra as
Nuvens “Eu sou metal/ raio, relâmpago e trovão/ Eu sou metal/ Eu sou o ouro em
seu brasão”, é uma bonita autoafirmação de um homem que diante de uma situação
adversa se lembra da sua própria dignidade. E aqui também vejo um belo paralelo
entre a música e nossa ascese de cada dia para lutar contra nossos próprios
pecados. É preciso recuperar aquele brio que tinham os primeiros cristãos e que
têm os santos. Diante do pecado que quer nos rebaixar devemos lembrar que somos
uma raça de “sacerdotes, profetas e reis”, de homens livres, que não aceitam
ser escravos.
Quantas mulheres hoje aceitam que
todos os homens são infiéis e que a vida é assim mesmo? Quantos homens aceitam
passivamente o jogo político e de interesses em cada local de trabalho deste
país e aceitam isso como natural? Não podemos aceitar viver assim.
E diante dessas mentiras sobre a
natureza humana, apresentada cada vez mais como mais decaída, devemos erguer
nossa voz interior e nos lembrar da dignidade de Nosso Pai, do que somos
realmente feitos e a que preço fomos salvos. Eu não posso aceitar que os casais
briguem de vez em quando e isso seja normal. Não posso aceitar que me sinta
atraído por todas as mulheres que passem na rua e considerar isso normal (desde
que meus pensamentos não venham a público), não posso aceitar deixar que um
colega de trabalho seja injustiçado porque essas coisas são assim mesmo...
Tendo consciência que de fato
existe um Deus, e que Ele se fez homem em Jesus Cristo Nosso Senhor, quero amar
minha esposa de todo coração e ser paciente e sereno, quero ser leal aos meus
amigos, corajoso, destemido e quero ser casto no mais íntimo dos meus
pensamentos. Sabendo que o homem é de tal maneira amado por Deus e que por
causa dEle sua dignidade é infinita, não podemos aceitar ser uma criatura
caprichosa, frívola e inconstante. Devemos nos revoltar contra essas afirmações.
E é importante lembrar que o
desejo de perfeição, de santidade, não significa santidade. E o desejo de
perfeição deve crescer na mesma medida em que crescemos em misericórdia para
com os outros e para conosco mesmos. Do contrário, apontando na direção do amor
seríamos carrascos uns dos outros, o que é totalmente absurdo para a lógica de
um Deus que morreu por amor a nós, quando estávamos todos (e ainda estamos) no
pecado, quando nem sequer o conhecíamos. Morreu apenas pela vaga possibilidade
de que fôssemos salvos, morreu por amor somente, sem garantias de que seria
amado.
E voltando à música novamente, outro
verso que acho particularmente forte é quando na parte mais dramática da música
o personagem canta “não me entrego sem lutar/ tenho ainda coração/ não aprendi
a me render/ que caia o inimigo então”. O cristão não é um homem passivo. Tão
pouco um submisso, ou pior ainda, um desiludido melancólico. É um violento (no
sentido evangélico do termo, claro), um revolucionário (no sentido deste texto,
claro de novo, rs), alguém que não se submete às leis deste mundo, que tendo
mil vezes caído no mesmo pecado, mil e uma vezes se levantará, pois não aceita,
não se rende. Não se submete às leis do pecado, embora possa muitas vezes ter
sido feito cativo por elas.
Eu me lembro das muitas vezes em
que me vi prostrado pelos meus próprios pecados. Lembro que muitas vezes a
única coisa que me movia adiante era não aceitar que a história terminasse
assim. Como alguém que viu o Senhor pode agir tão mal assim? Me perguntei isso muitas vezes. Tem sido um
longo aprendizado. Vejo na vida de muitas pessoas e na minha também que Deus
tem vencido, que não nos abandona à nossa própria sorte e que ao menor sinal de
perseverança Ele nos cumula de todas as dádivas e bênçãos, o esforço que Ele
nos pede é infinitamente pequeno em relação ao bem que nos dá.
Mas o que gostaria de ter ouvido
ainda adolescente é que não se deve ter medo de lutar contra o pecado. O pecado
é um assassino, um estuprador, um mentiroso que não nos traz bem nenhum e é
preciso voar sem medo e ir de corpo inteiro ao seu embate, com coragem, certos
da vitória, com a espada em riste, pois a única possibilidade de derrota que
temos nesta batalha é não lutar.
E concluindo com a música:
“E nossa história não ficará,
pelo avesso assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas para contar. E até
lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer, não olhe para trás, apenas
começamos. O mundo começa agora. Apenas começamos”.