Archive for 2014

O Vaticano e a ONU

Sobre as recentes polêmicas com o Comitê dos Direitos da Criança e o Comitê sobre Tortura da ONU. 

Poucas pessoas têm acompanhado as recentes disputas na ONU em torno do Vaticano. Em janeiro de 2014 o Vaticano recebeu um relatório do Comitê dos Direitos das Crianças criticando a condução dos casos de pedofilia envolvendo o clero católico[1]

Nada de se estranhar à primeira vista, afinal os escândalos de fato existiram e é justo levantar considerações sobre a condução dos casos. Os relatórios fazem parte de um pacto assinado pelo Vaticano. Além disso, todos os países do mundo recebem relatórios de comitês da ONU denunciando erro de conduta em temas de direitos humanos. 

A polêmica começa de verdade no ponto em que o relatório sugere que a Igreja mude sua doutrina com relação à família, o aborto e etc, dando a entender que a doutrina católica é em certo sentido causa dos escândalos. Bem, uma coisa simplesmente não tem nada a ver com a outra. 

Este mês o representante do Vaticano no Comitê contra a Tortura ouviu que a Igreja pratica tortura com sua doutrina sobre o aborto. D. Tomasi respondeu firme, apontando que “o aborto em fase avançada constitui tortura” e ainda que “a Igreja condena a tortura de qualquer pessoa, inclusive daqueles que são torturados e assassinados antes de nascer”.

Afinal, uma coisa simplesmente não tem nada a ver com a outra e grupos de pressão dentro da ONU colocaram o aborto no meio de novo, totalmente fora de contexto. 

E há ainda neste momento um movimento dentro da ONU pedindo que o Vaticano perca o seu status de estado observador, perdendo o direito à palavra em algumas comissões da ONU, já que o direito a voto o Vaticano não tem. Uma explanação sobre os direitos do Vaticano na ONU pode ser vista aqui[2].

É interessante ver o vídeo da campanha, das “Católicas pelo Direito de Decidir”, com direito a bonequinho do papa e tudo mais, muito sério e bem fundamentado (e espero que tenham entendido a ironia). O argumento principal da campanha é que o Vaticano evita que temas como “aborto”, “educação sexual” e eutanásia sejam aprovados fazendo lobby junto a países pequenos e conservadores que acabam votando contra. Mas aí eu me pergunto: as minorias só valem quando votam a favor? 

No caso do relatório sobre abuso de menores, o Vaticano se defendeu dizendo que não tem jurisdição sobre as Igrejas pelo mundo, e que cabe aos governos locais investigar e punir crimes dessa natureza, além de apontar todos seus esforços nos sentido de coibir estes crimes. Bem, obviamente é verdade, mas em um mundo em que o Greenpeace, por exemplo, cobra de grandes multinacionais com sede nos EUA e na Europa que suas práticas sejam sustentáveis na extração de matérias primas no mundo inteiro, é difícil sustentar esse argumento. 

Já com relação à participação do Vaticano na ONU, entendo que o primeiro passo é não jogar a ONU inteira nessa discussão. A polêmica gira em torno de duas ou três agências ligadas à campanha pró-aborto feita por grandes ongs e fundações internacionais como Planned Parenthood e as fundações Ford e Rockfeller. O outro ponto é não agir com uma inacreditável ingenuidade e não ver neste movimento coordenado um lobby de fundo que vê a Igreja como um adversário político a ser eliminado. A esse respeito vale a pena ver o depoimento de Amparo Medina que chegou a trabalhar na UNFPA do Equador e depois teve um surpreendente retorno ao catolicismo[3]

Mas com relação ao tema específico da participação do Vaticano da ONU, o que devemos pensar? É justo a Igreja se fazer presente na ONU ocupando uma vaga semelhante à de um país e utilizar este espaço a seu favor? Ou deveria retirar-se, marcando uma distinção clara entre religião e política, atuando exclusivamente em outra dimensão social? 

O primeiro passo é observar o mandato, o objetivo em cima do qual é fundada a ONU, que é a manutenção da paz e da segurança internacional. Assim, a ONU pode se perguntar: o Vaticano, a Igreja, é um parceiro importante para a construção da paz mundial? Eu penso que a resposta é um objetivo sim, pela sua situação ímpar no mundo como única organização religiosa com uma hierarquia definida e uma doutrina clara, além de ser a instituição mais antiga do planeta em funcionamento e ter influenciado de alguma maneira a vida de pelo menos 1,4 bi das pessoas que estão vivas hoje sobre a Terra. É uma voz representativa na humanidade? Sim. Então por que não ouvi-la? 

Com relação ao status sui generis é importante lembrar que a ONU não possui soberania em si mesma, mas é resultado de um acordo internacional, é uma aliança política de nações soberanas que podem deliberar como quiserem dentro da proposta inicial da organização. Além de que, sui generis por sui generis, a ONU considera Taiwan parte da China, reconheceu países que ainda carecem de reconhecimento internacional como a Autoridade Palestina ou o Saara Ocidental e tem como objetivo ser uma instituição para salvaguardar a paz e a segurança no mundo inteiro, mas onde quem vota para decidir sobre o uso das armas são apenas cinco países. 

Se o ponto fosse democracia e legitimidade, a última linha é muito mais importante do que os pobres 1 km2 do Vaticano. 

Essa discussão já foi feita em 1964 quando a ONU acolheu o Vaticano como um estado observador permanente, ou seja, os estados membros já deliberaram a respeito e confirmaram novamente o status do Vaticano em 2004. Sejamos objetivos, o ponto é que alguns grupos não gostam de nossas opiniões. E ao invés de vencer nos argumentos, querem nos colocar para fora.


[1]http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/01/vaticano-admite-existencia-de-autores-de-abusos-contra-criancas-no-clero.html 
[2] http://www.holyseemission.org/about/participation-of-the-holy-see-in-the-un.aspx 
http://www.religionenlibertad.com/articulo_imprimir.asp?idarticulo=28988

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SEJA UM PONTO DE PAZ!


Este ano o Arsenal da Esperança completa 50 anos. Fundado em 1964 o Arsenal surgiu de jovens idealistas que transformaram um antigo arsenal militar em um local para acolher pessoas em situação de pobreza. Para se ter uma ideia, em São Paulo o Arsenal acolhe atualmente 1.200 pessoas e já foram realizadas 77 missões de paz em zonas de conflito pelo mundo. Para comemorar estão convidando todos a serem "pontos de paz" espalhados pela cidade, no dia 24/05. Junte-se a esta iniciativa e acesse para conhecer mais clicando na imagem.



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Brasil e Violência


Por um novo país, começando do começo.

Já passou algum tempo do começo da polêmica sobre a comentarista do SBT, Rachel Sherazade, mas acho que ainda vale a pena aproveitar o assunto, para uma conversa de maturação mais longa, sobre a questão da violência em nosso país. 

Entre os diversos artigos que surgiram no calor do momento, vale apena ler o do Contardo Caligaris na Folha (1). No artigo, Calligaris fala da inexistência de uma “comunidade de destino”, um sentimento comum de país, como a principal causa para a violência endêmica que nos assola e que tanto tem assolado nossos noticiários. Segundo ele “habitamos uma zona de tiro livre” e entre nós a “coisa pública simplesmente não vingou”.

Seguindo esse raciocínio, não é difícil concluir que linchadores e bandidos são resultado da mesma conta, apenas com o sinal invertido.

Bem, todos nós, ou pelo menos a grande maioria de nós, compartilha o sentimento de que o Estado brasileiro simplesmente não existe. O que existe é um arremedo de Estado, uma espécie de força policial que garante um país para poucos. 

E não sei o que é pior: ser um país para poucos ou ser um país em que muitos querem fazer parte desses poucos. 

Entretanto, a questão é mais profunda. Afinal, como que diante do constrangimento de vermos condomínios encastelados em frente a favelas e cidades com pouquíssima estrutura – basta lembra que no Rio de Janeiro bueiros explodiam - ainda temos este sentimento de que somos brasileiros, de que algo efetivamente nos une? Como isso é possível?

Embora nosso país não seja um mar de rosas cultural, é inegável que aqui a assimilação de outras culturas de se deu de forma muito mais positiva que em outros lugares. Pedro Morandé aponta que o surgimento da América Latina se deu em meio a um projeto com elementos profundamente populares e, inclusive, voltado para a população mais pobre. 

A cidade de São Paulo, por exemplo, surgiu a partir da experiência de um colégio jesuíta, uma escola para indígenas, onde se ensinava em Tupi. O chimarrão é uma invenção dos jesuítas para os indígenas da região dos pampas. São iniciativas que, ainda que não contem com a ideia de uma sociedade pluricultural como pensamos hoje, já nasceram com o intuito de incorporar, abraçar, a cultura do outro. 

É verdade que via de regra os santos são uma pequena minoria, e aqui o pleonasmo é proposital, mas em alguns momentos da história e entre alguns grupos não raro os bons formaram um número considerável, que não conseguimos notar, tão acostumados que estamos a olharmos somente para nós mesmos.

Este processo iniciado no trabalho dos jesuítas será rompido no período do Marquês de Pombal com a supressão das ordens religiosas no Brasil em 1759. Este processo seria emblemático de duas tendências que marcariam nossa história, por um lado a convivência de diferentes culturas abraçadas pelo mesmo ideal religioso e de outro o surgimento de uma elite em oposição a este modelo, ou pelo menos ao que entendia dele.

Olhando para o mundo lá fora, vemos que os primeiros imigrantes que chegaram às treze colônias que viriam a ser os EUA acreditavam estar cruzando o Atlântico da mesma forma que o povo de Israel cruzou o mar vermelho, deixando uma terra de escravidão para uma de prosperidade, que seria marcada pela liberdade religiosa. No século III a.C o imperador Ashoka, depois de convertido ao Budismo, unificou o subcontinente indiano, construiu mosteiros e decretou uma era de paz, chegando até a enviar missionários para outros países, uma história que tem alguns aspectos semelhantes às de vários reis católicos. 

Tendo em mente essas experiências penso que é difícil falar do surgimento de uma nação sem um ideal que nos abrace inteiramente como pessoas, que nos projete para o infinito. 

Simplesmente nos faltariam motivação e forças para um ideal tão grande. 

Na nossa brasilidade acredito que já temos elementos para um ideal mais ousado. A alegria da diversidade cultural é sem dúvida um marco positivo nosso. Nenhum outro povo colocaria sushi dentro de uma churrascaria. A nossa tolerância com os fracassados, algo notado em uma excelente palestra do Prof. Dr. Alfredo Behrens que assisti recentemente. Povos ditos avançados não dão espaço para “perdedores”. Já aqui, infelizes nos negócios e desafortunados em geral ainda são queridos e estimados por suas famílias e amigos. 

E imagino que se conseguirmos estabelecer no nosso pedaço de chão a justiça, talvez mais do que queridos, os fracassados possam também vir a ser redimidos. Um farol para um mundo que cada vez mais exclui fracos e perdedores. Os portadores de doenças incuráveis, os que foram mal nos negócios, os pobres, as crianças por nascer. São perdedores que atrapalham a felicidade de nosso mundo perfeito e devem ser descartados.

A doçura, o cuidado com os mais fracos. As periferias existenciais naturalmente atraem o olhar dos brasileiros. Os pobres, os deprimidos, os tristes, todos eles despertam nossas pesquisas e preocupações. Um povo com uma inclinação natural assim pode ir muito longe com um pouco de força. E a doçura, em nenhum lugar do mundo se ri ou sorri tanto, nem na África, de quem herdamos o sorriso largo e a musicalidade. 

E contamos ainda com a fé que herdamos daqueles que primeiro vieram aqui.

Precisamos acreditar. Com um pouco de força e organização podemos avançar. Já temos um povo, só nos falta construir o país. Mas esta é a parte mais fácil. A mais difícil parece que os jesuítas já deixaram encaminhada. 

(1) http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2014/02/1414812-linchadores-e-bandidos.shtml

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Merchand

Minha irmã é personal chef, e achei justo uma postagem sobre o trabalho dela. Se quiser algo mais sofisticado para celebrar dignamente esta Páscoa, sem logos de multinacionais na mesa durante a Festa...


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SEMINÁRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL

Engajamento nas Escolas de Samba e Desenvolvimento Integral

O professor Alfredo Behrens da FIA é PhD pela Universidade de Cambridge e publicou pela Universidade de Standford um livro sobre a administração de organizações e cultura. Uma palestra muito interessante sobre a presença do lúdico, da festa em organizações e a relação destes com o êxito das escolas de samba no Brasil. Um olhar instigante sobre a apropriação de teorias organizacionais desenvolvidas no contexto de outras culturas apontando para a possibilidade de uma teoria organizacional brasileira.



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A Felicidade dos Casais sem Filhos


Sobre o estudo da OPEN University que ganhou espaço na mídia recentemente

Recebi recentemente de amigos um artigo do Luiz Felipe Pondé na Folha sobre uma pesquisa da Open University do Reino Unido que aponta que casais sem filhos são mais felizes nos seus relacionamentos (1). Já havia ouvido comentários a respeito quando a CBN também abordou o assunto há algum tempo atrás (2). 

Como já tenho dois filhos, o artigo não podia me ajudar muito a tomar uma decisão melhor sobre a minha vida, rs, mas resolvi ler a pesquisa para tentar entender o ponto dos pesquisadores (3) e confesso que fiquei um pouco surpreso com o que encontrei. Realmente a pesquisa aponta que casais sem filhos são mais felizes que os casais com filhos, mas também aponta que entre todos os grupos pesquisados, o das mães é consistentemente o mais feliz. E mesmo que estejam insatisfeitas com seus companheiros.

Logo, o ponto parece não ser tanto a questão de ter ou não ter filhos, já que as mães são as mais felizes. O ponto é que o relacionamento do casal com filhos é que parece apresentar alguns desafios. E mais, a satisfação das mulheres com seus companheiros, quando estão em um relacionamento com filhos é o que realmente apresenta problemas.

Para quem tem mais interesse, e traquejo com o assunto, vale a pena checar a amostra e observar que há um viés para mulheres e pessoas sem religião que estão sobrerrepresentadas na pesquisa, bem acima da média para o Reino Unido(4). Além disso, a pesquisa se baseia em perguntas com respostas espontâneas pela internet, o que pode, inclusive ter gerado este viés de seleção, embora os autores apresentem uma considerável bibliografia para defender o uso do método. 

Mas independentemente de gerar alguma dúvida sobre se podemos fazer inferências sobre o Reino Unido  e mais ainda sobre o mundo inteiro, a pesquisa oferece alguns insights muito interessantes.

A pergunta que fica no frigir dos ovos é: porque as mulheres estão infelizes com relação aos seus parceiros?

Isso me fez lembrar um problema curioso analisado em Economia da Felicidade, uma área relativamente nova de pesquisa que tenta encontrar determinantes de felicidade a partir de pesquisas quantitativas (5). Existe entre os pesquisadores de Economia da Felicidade o chamado “paradoxo da infelicidade feminina”. Basicamente o paradoxo consiste no seguinte: apesar do aumento da renda real praticamente no mundo todo e de todas as comodidades da vida moderna, as mulheres de hoje estão menos felizes que as dos anos 60. E os homens, ao contrário, mais felizes.

O problema para esses pesquisadores não parece ser o casamento, já que uma amiga que realizou sua dissertação sobre o tema encontrou que o casamento é um fator de acréscimo de felicidade no Brasil, corroborando uma série de estudos internacionais que vão na mesma direção, apesar da pesquisa ter sido feita para dados mais antigos (6). 

Também não são as horas trabalhadas, já que o número total de horas trabalhadas diminuiu para ambos os sexos, mesmo levando-se em consideração a “jornada dupla” que a maioria das mulheres com filhos acaba fazendo.

Qual será o ponto então? 

A revista Veja publicou nas últimas semanas uma intrigante entrevista com a feminista Camille Paglia em que ela defende a tese de que boa parte da infelicidade das mulheres se deve ao fato dos homens não mais se comportarem como elas gostariam que se comportassem, isto é, como se comportavam antes do feminismo ter alcançado a grande mídia. 

Eu não posso dizer que concordo. O que concordo é que, de fato, hoje os homens realmente não sabem como se comportar. Um comercial recente de dia dos pais dizia para não nos esquecermos do pai sempre presente, e logo depois aparecia um pai carregando as coisas da mulher e do filho na saída da maternidade. 

Convenhamos, é um trabalho bem secundário.

Entendo que a questão de reencontrar (ou encontrar) o papel dos homens nas famílias e na sociedade pode ser parte da solução deste paradoxo. E outro aspecto importante me parece ser o das relações terem se degenerado rapidamente em relações de consumo.

O alto índice de divórcios, e a sempre presente possibilidade de saída do relacionamento, a opt out option, parece fazer com que homens e mulheres exijam cada vez mais coisas de seus parceiros, afinal de contas, existe uma concorrência aberta, um mercado livre. E assim, passam a discutir entre si como empresas que discutem um contrato, com uma lista de direitos e deveres, cada vez maior e ao longo do tempo cada vez mais infringida. 

Mas referir-se a este reflexo do consumismo no casamento chamando-o de mercado livre também não é bem verdade, pois a concorrência é desleal. É mais fácil para o homem deixar mulher e filhos do que é para mulher deixar o homem (e aqui é proposital a ausência dos filhos).

A capacidade de autodoação, sacrifício, e a certeza de que esta é uma forma realização pessoal, capaz de gerar uma felicidade duradoura e serena parece ter sido riscada do manual de educação dos meninos.  E aqui arrisco um palpite sobre a infelicidade feminina com relação aos homens que acredito ser interessante ser melhor investigado.

Talvez um passo importante passo a ser dado pela sociedade contemporânea seja reexaminar os comportamentos tidos como tipicamente masculinos décadas atrás procurando entender o que neles possivelmente conferia uma maior estabilidade e abnegação na relação dentro dos casais por parte dos homens. Olhar sem o preconceito contrário construído nas últimas décadas, mas com um olhar purificado pela emancipação feminina e pela emergência de uma sociedade mais tolerante.




(3) Link para o material da Open University


(5) http://books.google.com.br/books/about/Handbook_on_the_Economics_of_Happiness.html?id=zCPzDfUlNpwC&redir_esc=y

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Porque acredito em Nossa Senhora

Ou sobre a devoção cristã à Virgem Maria, a Santa Mãe de Deus




Colocado assim, o título pode parecer para muita gente como algo do passado, uma coisa de velhinhas. É interessante como um tema tão crucial para entendermos o mundo contemporâneo ficou assim relegado para segundo plano. Inclusive para muitos católicos. Não se pode entender a sociedade sem se compreender a influência que a Igreja Católica desde a Antiguidade exerce sobre ela e não se pode entender conceitos como virgindade e maternidade sem compreender o papel dessa devoção na fé católica. 

Santa Edith Stein dizia que “buscar a verdade é andar sempre à beira do abismo”. E é uma frase que eu acho particularmente bem acertada. Desde que me converti ao catolicismo há cerca de 15 anos eu não sei quantas vezes tive esta sensação. Foram inúmeras as vezes que me senti à beira do abismo. 

A cada aspecto novo que descobria da fé, um questionamento, a cada passo, uma nova possibilidade de estar errado. Mas se o que buscamos é a verdade, não temos nada a perder. 

Já há excelentes trabalhos a respeito deste tema na internet[i] e não pretendo aqui falar de aspectos teológicos ou uma realizar uma apologética tradicional. Escrevo porque acredito que estamos todos no mesmo barco, na mesma busca, queremos “encontrar a face do Senhor” e às vezes as vemos refletidas aqui e acolá, em pedaços, às vezes um reflexo, tão rápido e logo perdemos de vista. Só existe um Deus, e um único mediador, Jesus Cristo, ao qual tantos invocam de tantas maneiras. E isso nos faz uma só família, na mesma busca, mais ou menos conscientes, mais ou menos fieis, mas unidos por aquele que invocamos. 

Gostaria apenas de escrever “como um coração que fala a outro coração”, conforme a belíssima expressão do Beato John Newman e consciente de que a maioria das pessoas não se converte a esta ou aquela religião por causa de um debate teológico, ou mesmo pelo conhecimento de uma doutrina. Isto também acontece, é verdade, mas é raro. Para a maioria das pessoas, um amigo, a ajuda em um momento difícil, o mal estar com relação à crítica pública feita a um grupo religioso, a família, para a maioria das pessoas essas coisas acabam sendo muitas vezes a experiência fundante de uma prática religiosa.

No retiro em que me converti, lembro que antes da primeira palestra foi feita a entrada da imagem da Virgem Maria como parte da oração inicial do encontro. O salão em que estávamos foi tomado por um clima de muita emoção e os participantes aplaudiram a entrada da imagem. Eu me lembro de também ter me emocionado, mas rapidamente corrigi este sentimento em minha mente dizendo para mim mesmo: “este é um comportamento emotivo e idólatra e estão aproveitando da fragilidade psicológica dos adolescentes”. Enquanto todos aplaudiam, eu deliberadamente cruzei os braços. 

Esta foi a primeira vez em que me coloquei o problema em questão. Eu sou filho de uma época em que muitas pessoas abandonam a fé e, no final das contas meu ceticismo não é tão diferente do deles. Com mais ou menos fervor, com maior ou menor fidelidade a esta minha incredulidade, eu repeti gestos semelhantes ao longo de alguns anos. Embora tenha me convertido na Igreja Católica, alguns aspectos desta fé não eram pontos passivos para mim. 

Por incrível que possa parecer, para mim era mais fácil acreditar no papa do que na Virgem Maria. Como encontrei o Senhor[ii] na Igreja Católica, para mim era evidente que Ele estava ali presente. E como a fé cristã não pode ser explicada sem a Igreja Católica, para mim também era claro que a Igreja era mãe, pois ela gerou a fé que recebi e que, portanto, éramos todos irmãos e era natural que alguém fosse o símbolo visível dessa unidade. Em uma família, estar juntos é mais importante do que concordar. E neste caso concreto, o estar juntos era a obediência àquele que por direito exercia este papel. 

Entretanto, imaginava que ao longo dos séculos este patrimônio de fé poderia ter se corrompido, agregando coisas que lhe eram estranhas, sem, contudo, perder o seu essencial. E imaginava que de algumas práticas a Igreja poderiam se purificar ao longo do tempo, afinal de contas, Deus não a havia abandonado e imaginava que estar junto e trabalhando internamente por uma purificação era a forma mais coerente de corresponder ao que eu havia experimentado. 

E com relação à devoção à Virgem Maria eu me perguntava sobre qual a sua necessidade, se afinal Deus já havia concedido a salvação e todas as graças por meu de seu Filho? E ainda, se o uso de imagens era fonte de tão grande oposição por parte de outros cristãos, não seria mais razoável abandoná-las aos poucos, já que isso poderia contribuir para uma maior unidade entre todos? Ainda mais tendo em vista que o uso de imagens não é algo essencial à fé cristã?

Basicamente estas eram minhas objeções e com base nelas em diversos momentos não osculei as imagens e sequer obtive alguma para minha oração pessoal.

Este cenário começou a mudar quando conheci uma amiga, muito convicta na prática dessa devoção. E o que mais me chamava a atenção nela era sua inocência e sua pureza, duas coisas extremamente difíceis para mim. 

Certo dia, conversando com essa amiga sobre o dogma mariano da Assunção chegamos a um impasse. Percebi que em algum momento eu a ofendi. Afinal de contas, eu estava tratando como uma hipótese teórica o que para ela era a Mãe dela. E quando se trata a mãe de alguém assim, bem, é difícil não ofender. E então me dei conta de que a relação dela com a Virgem Maria não era a de uma hipótese de fé, como era para mim, mas de verdadeira maternidade e verdadeira filiação.

E levando em consideração que esta sua devoção se destacava, mesmo entre outros católicos, eu comecei a pensar se a pureza e a inocência que ela tinha, e que por mais que eu rezasse e lutasse não obtinha, não eram frutos dessa devoção. Afinal, eram as duas coisas que apareciam juntas e a destacavam: a devoção mariana e a pureza e inocência de seu comportamento.

E acabei sendo impactado por algo tão simples e tão incisivo, encontrar alguém que crê. 

E enquanto eu considerava essas coisas, me ocorreu o pensamento de que meu erro até ali era considerar Deus como se Ele só fizesse coisas úteis, necessárias, como se fosse uma grande engrenagem, e não uma pessoa.

Mas Deus é uma pessoa, que constrói uma história concreta com a humanidade, e isto é o que mais desafia o pensamento contemporâneo. Não subiu aos céus cerca de 2000 anos atrás e nos deixou um código de leis para seguirmos, mas continua entre nós, escrevendo conosco a história. 

E nesta história construída conosco e construída com cada pessoa em particular, Deus chama cada um a uma participação única, e Ele pode conceder o que Ele quiser a quem Ele bem desejar, do contrário não seria Deus, seria uma força anônima na fronteira do universo, uma engrenagem. 

E refletindo sobre essas coisas me lembrei de que ao profeta Elias foi concedido o privilégio de não morrer. E que, olhando de fora, poderia parecer que Deus violou uma de suas regras, mas olhando de dentro, vemos que Elias tem um relacionamento particular com a Divindade, difícil de ser alcançado por outra pessoa. 

E como pensar então na Mãe do Senhor? Ela que teve o próprio Deus nos braços, e mais ainda, no ventre, que o ensinou a comer, a andar, que ouviu suas primeiras palavras. Como pensar que um Deus que é amor e misericórdia teria tratado sua Mãe com tamanha impessoalidade e como Ela, que teve nos braços um menino que valia mais do que o universo inteiro, que teve seu corpo imerso no mistério do Espírito Santo, poderia ser simplesmente uma entre uma multidão de mulheres ou ainda simplesmente diante de Deus na eternidade não desempenhar um papel singular na salvação de todos os homens?

E esta nova forma de viver a fé, me abriu um universo muito mais amplo. Com relação às imagens entendi que o ponto em questão é mais profundo. Se Deus se fez homem e morreu pela redenção de toda a humanidade, morreu e ressuscitou para redimir todos os homens e o homem todo. E o homem todo inclui também as suas artes e as suas esculturas. Do contrário, Deus teria condenado para sempre um dom que Ele mesmo infundiu no homem e o homem redimido seria um homem contido, restrito, que não poderia realizar parte de sua própria natureza. Mas Deus redimiu todas as coisas, sendo assim, não se trata de não fazer, ou de obedecer a um conjunto de regras mais ou menos razoáveis, mas de encontrar o bem em cada coisa e fazê-lo. E isto é uma liberdade muito maior, e também extremamente desafiadora. 

A estes pensamentos depois se seguiram muitos outros e ao conhecimento de todo um corpo de doutrinas propriamente ditas, mas também se seguiram muitas experiências e uma delas em particular gostaria de compartilhar. 

Em 2008, quando participava da Missa durante a Novena de Nossa Senhora Aparecida na cidade em que cresci, algo muito interessante aconteceu. Lembro que antes de começar a Missa, pedi a intercessão da Virgem Maria e de Padre Pio para que pudesse participar bem da Eucaristia. Na procissão de entrada o padre celebrante carregava em seus braços a imagem de Nossa Senhora Aparecida. 

No momento em que o padre e os ministros começaram a sua a entrada na Igreja para começar a celebração, eu senti que uma “força” e sentia que esta “força” saia da imagem. Era uma força muito grande, que eu não conseguia enfrentar, ou manter meu equilíbrio diante dela, ou sequer ficar em pé diante dela. De tal maneira que me pus de joelhos e comecei a chorar enquanto a imagem passava perto do local em que eu estava sentado. 

O que me chamou a atenção é que conforme a imagem passava esta força aumentava ou diminuía, de tal maneira que eu tinha a nítida impressão de que esta saía da imagem. 

No final da celebração, quando o padre e os ministros fizeram a procissão de saída o mesmo fato ocorreu novamente. E eu fiquei ainda algum tempo dentro da Igreja, refletindo e me recompondo. 

Alguns anos depois, creio que 3 ou 4, eu senti novamente esta mesma “força” mas numa proporção bem menor, como que “saindo” de uma religiosa, de um movimento particularmente devoto da Virgem da Maria. Movimento este do qual eu e minha família atualmente participamos. 

A partir dessas experiências se formou em mim a convicção de que a devoção à Virgem Maria é um patrimônio que Deus concedeu aos cristãos, e à humanidade inteira, em sua liberalidade e liberdade. Um patrimônio que não nos deve ofender ou preocupar, mas enriquecer.


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