Uma história que recebi de um
amigo e que vale a pena ser contada.
Natália nasceu por volta do ano 825,
tempo em que a divisão entre os cristãos ainda não tinha tomado os contornos
trágicos de hoje. Espanhola de Córdoba, filha de pais muçulmanos, durante a
dominação islâmica na Península Ibérica. Ela conheceu o cristianismo
quando sua mãe viúva se casou novamente, desta vez com um cristão, o que acabou
contribuindo para a conversão das duas. Natália se tornou cristã e passou a
viver secretamente a nova religião até conhecer um rapaz, Aurélio, que também
vivia na mesma condição. Os dois se casaram e tiveram duas filhas. Eram uma família relativamente abastada e com
certa importância na sociedade da época e se faziam
passar por bons muçulmanos às vistas dos outros, enquanto em casa vivam como bons cristãos. Ao
que parece, eram uma família relativamente feliz.
Salvo pela tensão que pairava
constantemente sobre essa cidade por conta das divergências entre cristãos e muçulmanos, a vida seguia
próspera e tranquila para o jovem casal. Até o dia em que um evento colocou em
cheque a vida ambígua que levavam. Aurélio presenciou a morte de um
cristão acusado de blasfêmia. Ao que parece, Aurélio era relativamente próximo
do assassinado e acompanhou de perto o ocorrido. Aurélio não pôde fazer nada e lhe causava enorme constrangimento o fato daquele homem ter sido morto por ter professado publicamente que era cristão, enquanto ele viva uma fé confortável e secreta.
Aurélio começou a se questionar
se não havia sido covarde, deixando um inocente morrer assim. Era muito cômodo
para ele fazer-se passar por muçulmano, levar uma vida financeira confortável e
secretamente levar uma vida cristã para apaziguar sua consciência. Mas agora
tinha se tornado demasiadamente claro que aquele sistema que lhe trazia
conforto era o mesmo que matava inocentes. Ele tomava consciência que era um
dos carrascos do sangue daquele homem.
Nunca poderemos saber ao certo o
que se passava no coração de Aurélio, e o que coloquei acima não passa de elucubrações, possibilidades, sabe-se que um profundo sentimento de repulsa
à covardia tomou conta dele e que para ele a situação em que vivia havia se
tornado insustentável.
Aurélio expôs seus sentimentos a
Natália e os dois começaram a se perguntar como deveriam viver. Com duas filhas
pequenas era arriscado demais se expor, correndo o risco de perder a vida e de
perder a vida de suas filhas. Por outro lado, viver assim era ser cúmplice de
tragédias como a que havia ocorrido. Além do mais, era uma fé profundamente
contraditória: como crer no Deus que se entregou ao ponto de morrer por Amor a
nós, no Deus que foi injustamente flagelado e morto quando tudo o que queria era
salvar os seus e agora negar sua amizade por aquele homem que pelo mesmo Amor
havia entregado sua vida?
Natália e Aurélio começaram então
a pedir forças e discernimento a Deus. Retomaram e reforçaram práticas que os
cristãos ensinam desde a Antiguidade: a oração, o jejum, a esmola e a leitura
de livros espirituais. E depois de um razoável período vivendo assim,
auxiliando secretamente cristãos encarcerados e vivendo intensamente os seus
momentos oração, chegaram à conclusão de que não havia outra solução que não
fosse a profissão pública de sua fé.
E o que fazer com suas filhas? E
se lhes acontecesse algo? Sob os conselhos de um cristão encarcerado que
auxiliavam, que depois veio a ser conhecido por Santo Eulógio, resolveram
enviar suas filhas para um lugar seguro, onde pudessem receber uma sólida
formação cristã. Enviaram-lhe os bens que achavam necessários e doaram o resto
aos pobres. E passaram a rezar com cada vez mais fervor, pedindo forças a Deus
para fazerem o que fosse necessário.
Certa noite, Natália teve uma
visão. Viu duas mulheres vestidas de branco com flores nas mãos e rodeadas de
luz. Estas lhe diziam que eles, juntamente com outro casal deveriam se preparar
para o martírio, e que a eles se juntaria um monge vindo de terras distantes. O
outro casal era Félix e Liliosa, parentes que, inspirados pelo exemplo de
Aurélio e Natália, buscavam viver a sua fé de forma mais plena e verdadeira.
Por mais estranho que possa
parecer, mas como sempre ocorre na vida dos homens e mulheres santos –
lembrando que santos são aqueles que souberam amar a Deus e aos irmãos com o
mesmo Amor de Nosso Senhor Jesus Cristo - a visão encheu os quatro de ânimo. Era de se esperar que ficassem aterrorizados,
afinal significava que de fato iriam morrer. Mas Aurélio e Natália pela prática
da oração e da caridade e pela força e sabedoria que Deus ia lhes concedendo ao
longo desse tempo já estavam tão cheios de Deus e era tão grande a certeza
deles de que iriam se encontrar com o Senhor, que já não tinham medo de nada.
Era certo para eles que depois
desta vida iriam para aquele lugar misterioso e que não é físico que chamamos
de Céu ou Paraíso e que ali estariam em paz e com Deus. O mesmo paraíso que
Nosso Senhor prometeu ao ladrão para o mesmo dia de sua morte (1), antes da
ressurreição final dos mortos.
Mas, apesar da confiança de Aurélio e Natália, não
havia nenhum sinal de um monge vindo de terras distantes. Até que no ano de 852,
um monge de nome Jorge chegou a Córdoba, buscando recursos para seus irmãos do
mosteiro na terra santa de onde viera. Tamanha era a fé que Aurélio já possuía que
quando Jorge o conheceu também se sentiu inflamado do desejo de doar toda a sua
vida a Cristo se fosse necessário. E nesta noite Natália teve outro sonho, via
o monge Jorge envolto numa nuvem de perfumes deliciosos.
Uma vez que se cumpriu o sinal
que havia sido profetizado na visão de Natália, os quatro se puseram então a
pensar como manifestariam publicamente sua fé. Em um dia de julho de 852, Aurélio foi à casa
de Santo Eulógio se despedir e pedir suas orações. Naquele mesmo dia, Natália e
Liliosa retiraram o véu que cobria suas cabeças e acompanhadas de seus maridos
foram à Basílica à vista de todos. Perguntados por que agiam assim,
responderam: porque somos cristãos.
Nada aconteceu num primeiro
momento, mas pela noite foram sequestrados pela polícia que os levou ao juiz.
Este tentou de todas as maneiras evitar que fossem condenados à morte,
fazendo-os negar sua fé. Mas eles se mantiveram firmes. Os quatro foram presos
e narra-se que durante esse período vários fenômenos foram presenciados pelos
carcereiros como luzes, vozes, visões e o prodígio das algemas se abrirem, como
ocorreu com São Pedro, conforme é narrado nos Atos dos Apóstolos (2).
Por fim, no dia 27 de julho, o
alcade, ou prefeito da cidade, tentou mais uma vez fazê-los desistir, negando
publicamente a fé e como isso não aconteceu foram degolados os cinco: Aurélio,
Natália, Félix, Liliosa e o monge Jorge.
Santo Eulógio, que foi testemunha
dos fatos e por quem nos chegou essa narrativa diz daqueles casais que “belos e amáveis são os santos de Deus,
amaram-se docemente durante a vida e não quiseram separar-se durante a morte”.
Esta história nos chama a atenção
em diversos aspectos. O fato dos carrascos terem sido muçulmanos é apenas um
acidente histórico e não nos deve chamar a atenção, sabemos por diversas
histórias de outros santos que muitas vezes os carrascos foram os próprios
católicos. Também não devemos ter o martírio como meta de vida religiosa, isso
seria um absurdo para seguir o Deus que é o Deus da vida e não da morte. Esta é
uma situação rara, um dom de Deus que concede forças e sabedoria, mas não deve
ser procurado em si mesmo. Grandes Santos como Santo Antônio queriam fazer-se
mártires e Deus não o permitiu. O martírio deve ser visto apenas como uma medida
da radicalidade com que se entregaram a Deus.
Chama a atenção a gravidade que
Aurélio enxergou na covardia. E hoje, quantas vezes deixamos que homens e
mulheres inocentes sejam difamados publicamente sem fazer nada. Muitas vezes, e
infelizmente muitas vezes dentro da Igreja, porque discordamos de 3 ou 4 pontos
irrelevantes de alguém, deixamos que o maltratem e preferirmos nos unir aos
carrascos, rindo de uma vítima inocente, a enfrentar a opinião pública para
fazer justiça. Os Salmos falam diversas vezes sobre o justo que é difamado e
que seu socorro vem do Senhor, devemos esperar o nosso próprio socorro do
Senhor, mas devemos ainda, como falam os mesmos Salmos, o Evangelho e toda
Tradição, socorrer aos nossos irmãos, amigos e a todas as pessoas que
injustamente forem assim ofendidas.
Outro ponto que também entra em choque com a opinião pública corrente é o fato de Aurélio e Natália terem preferido ver suas
filhas sem os pais a deixá-las sem uma verdadeira educação cristã. Eles tinham
plena consciência que o melhor que poderiam deixar para suas filhas era uma fé
autêntica, segura. E pagaram um alto preço por isso. Hoje em dia, em que a
conveniência determina boa parte do nosso comportamento, devemos nos deixar
iluminar pelo exemplo desses santos que tinham excelentes motivos para não
viverem e não declararem publicamente sua fé: poderiam dizer que necessitavam
manter a carreira para poder manter o padrão de vida dos filhos, ou ainda que
deveriam proteger seus filhos da violência. Mas preferiram a verdade à
conveniência.
Podemos ainda notar que muitos
outros católicos naquela mesma cidade e naquele mesmo ano preferiram a
conveniência. Como repetidamente acontece ao longo da história, é triste ver
como se cumpriu tantas e tantas vezes a profecia que diz “este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”
(3). Por outro lado, esse fato mostra que para compreendermos a fé e os frutos
que ela gera no coração do homem, como no caso destes mártires de Córdoba, não
podemos considerar a média do pensamento de uma época, pois a média, raro algumas
exceções, é infiel. Para compreender o verdadeiro efeito da fé na alma humana é
preciso observar a pequena comunidade dos santos, daqueles que efetivamente a aplicaram
em suas vidas(4).
E por fim, é interessante nos
determos sobre o ato de “desobediência civil” de Natália e Liliosa: descobrir a
cabeça. Fala-se muito da emancipação feminina. Sem dúvida que um melhor
tratamento das mulheres, ao menos em certos aspectos, é uma das grandes
conquistas do século XX. Mas por que desobedecer, resistir? Natália desobedeceu
ao sistema de leis e costumes vigentes em Córdoba no século IX não somente para
afirmar sua total independência a um sistema opressor, mas também para dizer
que há um sistema de leis superior a este, que verdadeiramente governa e
liberta o homem. Que a Revelação que recebemos, guardamos e professamos de que
há um Deus e que Ele é Amor vale mais do que a nossa própria vida. Ela entregou-se
à morte para que suas filhas pudessem obedecer essas leis livremente.
No mundo em que tantos preferem a
conveniência, é preciso encher-se de ânimo e lembrar-se da dignidade e da
grandeza que a vida humana pode alcançar quando se deixa levar pelas inspirações
da graça, como a destes cinco “consagrados” que entregaram suas vidas, quatro
esposos e um religioso. E para podermos viver esta realidade pelo menos em uma
pequena medida do que viveram Aurélio e Natália, talvez nos valha aprender do
exemplo deles, começando com os mesmos passos singelos que deram inicialmente: a
oração, o jejum, a esmola e a leitura de bons livros, livros de pessoas
melhores que nós e que nos inspirem.
(1) Lc
23,43
(2) At
12,7
(3) Is
29,13 e Mc 7,6
(4) Sobre
a necessidade de se compreender o Evangelho pela vida dos santos há um pequeno
trecho a este respeito em “Jesus de Nazaré – Da entrada em Jerusalém até a
Ressurreição” de Bento XVI
O texto é baseado no trabalho de um padre das equipes de Nossa Senhora que atuou no Peru e nos EUA chamado "Matrimonios Santos: los santos casados como modelos de espiritualidad conyugal", com alguns exemplos de santos casados. O material chegou para mim sem a assinatura do padre, portanto não tenho o nome, mas posso enviar por email a quem desejar.
É IMPORTANTE RESSALTAR QUE HÁ CONTROVÉRSIAS ACERCA DA NECESSIDADE DOS CRISTÃO DESSA ÉPOCA SE EXPOREM AO MARTÍRIO E SOBRE A FORMA QUE OS CRISTÃOS DE CÓRDOBA SE COMPORTARAM DIANTE DA DOMINAÇÃO MUÇULMANA QUE FOI RELATIVAMENTE TOLERANTE COM O CULTO CRISTÃO, SEM PROIBI-LO
É IMPORTANTE RESSALTAR QUE HÁ CONTROVÉRSIAS ACERCA DA NECESSIDADE DOS CRISTÃO DESSA ÉPOCA SE EXPOREM AO MARTÍRIO E SOBRE A FORMA QUE OS CRISTÃOS DE CÓRDOBA SE COMPORTARAM DIANTE DA DOMINAÇÃO MUÇULMANA QUE FOI RELATIVAMENTE TOLERANTE COM O CULTO CRISTÃO, SEM PROIBI-LO