Uma outra história que vale a
pena ser contada
Durante seus estudos de medicina
em Nagasaki, Takashi Nagai ficou hospedado na casa da família Moriyama. Esta
família cultivava a fé desde o século XVII, no tempo dos mártires de Nagasaki.
O testemunho silencioso da família Moriyama veio ao encontro das buscas
interiores de Takashi que começava a descobrir o cristianismo depois de ler
Pascal na universidade, quando já estava imerso no ateísmo. A convite da
família ele participou de sua primeira Missa na Véspera do Natal de 1932.
Naquela noite, Midori, a filha
única do casal Moriyama estava em casa e começou a sentir fortes dores. Takashi
diagnosticou uma apendicite aguda e a levou em seus braços em meio a uma
tempestade de neve até o hospital para ser operada às pressas. E esta foi a
primeira de muitas vezes em que a vida de um esteve nas mãos do outro.
Desde que conheceu Takashi,
Midori rezava por sua conversão. Em 1933, Takashi serviu o exército japonês
como médico na guerra com a China e Midori lhe enviou um pacote que continha
entre diversos itens de primeira necessidade alguns livros sobre a doutrina
católica. Takashi voltou em junho de 1934 totalmente convertido à fé católica e
quis fazer-se batizar, apesar da oposição de seu pai.
Tão terno vínculo de alma entre
Takashi e Midori logo elevou-se a um laço de amor ainda mais íntimo e conforme
a tradição japonesa de então o padre que batizou Takashi convidou seu padrinho
para cumprir a função de nakodo, e
organizar o casamento de ambos. Mas ainda havia um ponto que causava profunda
preocupação em Takashi.
Takashi era médico radiologista e
adotara a profissão por ideal. Naquela época, a operação de máquinas de raio X
era extremamente arriscada e era comum que os profissionais da área morressem em
poucos anos por conta da exposição aos raios gama. Para ele seu trabalho contribuía
para o avanço da ciência e para que muitas vidas fossem salvas. Ainda que isto
custasse sua própria vida. Mas ele precisava saber se Midori aceitaria.
Por meio do intermediário, Midori
respondeu:
Será meu privilégio compartilhar do teu itinerário aonde quer que vá e aceitar
qualquer coisa que passe em teu caminho.
Casados, Takashi e Midori tiveram
situações difíceis. Os anos que se seguiram foram de crise econômica e o
salário do médico não era suficiente para cobrir os gastos da família, a quem
se juntara a viúva Moriyama e os dois filhos que vieram. Midori começou a
costurar, plantar hortaliças e dar aulas de artes tradicionais japonesas, como
arranjos florais, para ajudar na casa e garantir que seu marido se dedicasse
inteiramente à pesquisa científica. Ela lia com entusiasmo todos os artigos que
o marido publicava, mesmo quando não entendia bem alguns pontos.
Certo dia, depois de socorrer um
paciente asmático, Takashi teve ele mesmo um ataque de asma e ficou caído na
neve. Midori o acabou encontrando e ela mesma lhe aplicou uma injeção e o
carregou para casa. E ela agora lhe devolvia o favor que lhe havia feito
antes de se casarem.
Em junho de 1945, enquanto os EUA
preparavam sua ofensiva final contra o Japão, Takashi recebeu a terrível e
esperada notícia. Havia contraído leucemia e imaginava ter mais dois ou três
anos de vida. Recebeu a notícia com serenidade, mas quando ficou a sós sua fé se
abalou:
Senhor, tu sabes como sou fraco, não sei se poderei aguentar. Por que
tão cedo Senhor? O que será de minha esposa e meus filhos? E o trabalho que
deixarei sem terminar...(1)
Olhando para a máquina de raio X
e vendo-a desgastada pelos anos de uso, esta mesma máquina que lhe ajudou a
obter o doutorado, a salvar tantas vidas...sentiu paz. Ele também, como aquela
velha máquina, havia se desgastado a serviço do próximo.
Mas como contar para Midori?
Chegando em casa, contou-lhe o
ocorrido. Midori se levantou sem palavra, e ajoelhou-se aos pés do crucifixo que a
sua família possuía há 250 anos. Takashi ajoelhou-se ao seu lado e notou que em
silêncio ela se afogava em lágrimas. Depois, em paz, ela lhe disse:
Nós dissemos antes de nos casarmos e antes que você fosse pela segunda
vez à guerra na China que se nossas vidas se gastam a serviço da glória de
Deus, então a vida e a morte são belas. Você deu tudo que tinha para este
trabalho e isto era muito importante. Foi para a glória dEle.
Takashi segurava suas lágrimas. Não
por pena de si mesmo. Nem por compaixão por sua esposa e filhos. Mas lágrimas
de gratidão. Gratidão por Midori. Naquele momento, narra ele em um dos seus
livros, ele se sentiu diante do que é a santidade.
Quando ele retornou para o
trabalho, se sentia como um homem novo, sem o menor receio ou culpa.
Experimentava, diz ele, a liberdade que se sente quando se está fazendo a
vontade de Deus. Ele tinha consciência de que sua morte provavelmente seria
lenta e dolorosa, mas a certeza de que Midori estaria com ele, lhe cerraria os
olhos e rezaria com ele em seus instantes finais lhe confortava.
Mas em agosto de 1945 o exército
americano lançou panfletos sobre Nagasaki avisando sobre o ataque que se
aproximava. Em 6 de agosto chegaram as notícias sobre Hiroshima. Takashi e
Midori resolveram então enviar seus filhos para a casa em que a avó agora
vivia, atrás das montanhas. No dia 8 de agosto, com os filhos em segurança,
Takashi e Midori caminhavam juntos para o abrigo anti-aéreo. Ele se apoiava
nela, já que a leucemia avançava. Conversavam sobre o que fariam para a Festa
da Assunção de Maria que se aproximava e comentavam, rindo, de que como seria
difícil para a avó cuidar dos netos sozinha...parece que enquanto estavam
juntos é como se não houvesse guerra e nem dor.
Depois Takashi deixou Midori em
casa e voltou para o hospital universitário em que trabalhava. Ele se recusou a
ser dispensado de ficar de plantão para as emergências. No meio do caminho,
lembrou -se de que havia esquecido algo. Ao chegar em casa surpreendeu Midori chorando
descontroladamente, de joelhos. Ele nunca soube se ali a sós ela vivia sua
própria fragilidade ou se antecipava de certa maneira o evento do dia seguinte.
No dia 9 de agosto por volta das 11h ocorreu o ataque nuclear a Nagasaki. Takashi estava em seu escritório e foi
arremessado para debaixo de um monte de escombros. Depois de alguns minutos
conseguiu locomover-se e, no meio da escuridão causada em pleno dia pela bomba
atômica, tentava reagrupar os médicos para prestarem socorro às vítimas. Pouco
podia ser feito, não sobrara praticamente nada do hospital e os feridos foram
das dezenas às centenas em alguns minutos. Ele sabia que por ser conhecido
por sua coragem e paciência era necessário permanecer ali para que os demais não se desesperassem e ao menos os pacientes pudessem morrer com alguma dignidade.
Somente 5h depois pôde se dirigir
ao encontro de Midori. O bairro todo destruído. A catedral católica em cinzas.
Midori havia morrido, certamente havia morrido... Por conta de uma hemorragia no
peito, devido a um ferimento que sofreu na hora da explosão, Takashi desmaiou.
Foi levado a um hospital e somente dois dias depois, quando o exército japonês
já havia chegado e tomado conta da situação, pôde voltar até sua casa.
Chegando, encontrou um pequeno
objeto negro, eram restos carbonizados, em que pouco se podia divisar: um
crânio, a coluna vertebral e a pélvis. Midori. Era agora necessário dar-lhe um
enterro digno.
Enquanto chorando recolhia os
restos da esposa, pode notar, entre os restos carbonizados de sua mão direita,
ainda que numa confusa massa fundida, o crucifixo e as contas do Rosário com
que tantas vezes a tinha visto rezar. Midori morreu em oração.
Querido Deus, obrigado por ter-lhe permitido morrer rezando. Mãe das
Dores, obrigado por ter estado com Midori na hora de sua morte. Ó bondoso
Jesus, Nosso Salvador, Vós suastes sangue e carregaste vossa pesada cruz até o
lugar de vossa crucifixão, e agora derramastes uma luz aprazível sobre o
mistério do sofrimento e da morte: a de Midori e a minha também.
Depois de enterrar os restos de
Midori, voltou para o lugar do que antes fora sua casa. Esgotado pela leucemia
e pela hemorragia, desmaiou novamente. Acordou de madrugada e logo viu Vênus, a
“estrela da manhã”, título que os cristãos dão à Virgem Maria por anteceder o
verdadeiro sol, que é Jesus, e impelido interiormente, se pôs de joelhos e
rezou o terço. Levantou-se fortalecido interiormente e pronto para fazer o que
Deus quisesse antes que fosse a hora de cruzar a morte e reencontrar Midori.
Mas apenas um mês depois Takashi caiu
doente por conta da radiação. A ferida no peito começou a apodrecer e a sangrar
novamente, febres constantes de 40º C, inchaços por todo o corpo, palpitações e
ele conhecia bem os sintomas que tratava todos os dias em seus pacientes. Entrava
e saia do coma. Em um dos comas ouviu uma voz, que nenhum dos que o
acompanhavam ouviu, que lhe dizia: “pede ao Padre Maximiliano Kolbe que ore por
ti”.
Takashi conheceu o Padre Kolbe
durante a sua estadia no Japão. Àquela altura o Padre Kolbe já havia sido martirizado
em um campo de concentração (2) mas Takashi não tinha como saber disso. Depois
deste episódio a ferida no peito se fechou e ele recuperou a saúde até perdê-la
novamente no ano seguinte, quando passou a ter que ficar acamado. Takashi Nagai
viveu ainda 6 anos em que escreveu cerca de 12 livros sobre suas experiências, a
guerra e a doença nuclear. Morreu jovem, aos 42 anos.
No epitáfio de Midori lê-se “eis
aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra” e no dele “somos
servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer”.
Takashi Nagai está em processo de
beatificação, tendo sido declarado servo de Deus pela Igreja Católica.
(1) Segundo a autobiografia de
Takashi Nagai - Horobinu Mono Wo
(2) Pode-se
ler sobre o Padre Kolbe neste post:
O
texto é baseado no trabalho de um padre das equipes de Nossa Senhora que atuou
no Peru e nos EUA chamado "Matrimonios Santos: los santos casados como
modelos de espiritualidad conyugal", com alguns exemplos de santos
casados. O material chegou para mim sem a assinatura do padre, portanto não
tenho o nome, mas posso enviar por email a quem desejar.
CONVITE:
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