Esta Páscoa e a unidade dos cristãos
Este ano a Quaresma começou mais
cedo para os católicos. Passaremos parte dela em
sede vacante, sem nosso pastor maior, no escuro da Quaresma à
espera da Ressurreição do Senhor. Este é um período muito singular e que convida
à profunda oração todos os cristãos.
Chiara Lubich dizia que a
santidade é a capacidade de conciliar virtudes opostas. Eu vi homens
extremamente firmes terem os maiores gestos de ternura, vi homens inteligentíssimos
dizerem que não sabem e agora me surpreendo novamente, vendo um homem de uma
tenacidade inacreditável reconhecer, humildemente, que lhe faltam as forças.
Sem dúvida que os sentimentos
ainda são confusos neste momento e é necessário dar tempo ao tempo, mas é sem
dúvida um ato de coragem. A história nos dirá qual foi o sacrifício feito pelo Papa.
Podemos pensar se Bento XVI não dá
assim sequencia ao que João Paulo I iniciou ao aposentar a tiara pontifícia,
sinal do poder papal e sinal também de contenda entre os cristãos, explicitando
desta forma a essência do ministério petrino: o serviço à unidade da Igreja. A
Cátedra de Pedro deve confirmar os irmãos na fé e guardá-los na unidade, e quão
bem fez isto Bento XVI!
Num tempo em que muitos querem
levar o pecado para o seio da Igreja, ele lembrou que Nosso Senhor morreu para
nos livrar de nossos pecados, não para diviniza-los. E que só há verdadeira
liberdade na verdade. A verdade nos
libertará.
Soube conduzir para o coração da
Igreja grupos proscritos desde o Concílio por conta de suas visões tidas como
tradicionalistas pelos opositores ao mesmo tempo em que manteve e aprofundou as
resoluções do Concílio Vaticano II dando-lhes um sadio direcionamento, mantendo
diálogo fraterno com toda a Igreja. Soube aprofundar o mistério da Igreja sobre
si mesma e ao mesmo tempo abrir seu coração para todos os que professam a fé em
Cristo.
Que contradição aparente! É
surpreendente que um Papa que prezou tanto pela ortodoxia, seja ao mesmo tempo
um dos que mais contribuiu para a unidade dos cristãos (1).
Esta Páscoa será ainda marcada
por outro fato extraordinário: este ano católicos e ortodoxos celebrarão a
Páscoa no mesmo dia. Está em processo de autorização pela Santa Sé que este ano
os católicos da Terra Santa celebrem a Páscoa na mesma data em que os ortodoxos
(2).
Talvez muitas pessoas não
percebam a importância deste gesto. Os católicos celebram a Páscoa em datas
diferentes, que às vezes coincidem, desde 1582(3). Neste ano foi
introduzido, por conta dos estudos astronômicos da época, o calendário
gregoriano, que é o que utilizamos até hoje, na parte ocidental do mundo.
Católicos e ortodoxos haviam se separado em 1054, assim a alteração da forma
como se calcula a data da Páscoa acabou ocorrendo apenas na Igreja Católica
Romana.
Para se ter ideia da importância de se celebrar juntos a
Festa da Páscoa, a maior dos Cristãos, é interessante conhecer Myrna Nazour,
católica síria, casada com um católico ortodoxo, que tem feito um importante
trabalho neste sentido(4).
Desde 1984 uma série de eventos
marcou profundamente a vida de Myrna e de sua família. Naquele ano, o quadro
que ela possuía em casa de Nossa Senhora de Kazan, uma devoção russa, e,
portanto, da Igreja Católica Oriental ou Ortodoxa, começou a exsudar óleo e
algumas pessoas enfermas obtiveram a cura depois de rezarem diante da imagem ou
untarem-se com o óleo.
A casa de Myrna, uma família
comum de pessoas até então pouco fervorosas na fé, se tornou então um centro de
peregrinação e a imagem passou começou a ser conhecida como Nossa Senhora de
Soufanieh, o bairro em que Myrna mora em Damasco. Dos diversos fenômenos que
passaram a ocorrer desde então, destacam-se aparições da Virgem em que lhe
pede, e pede a nós, a unidade da Festa da Páscoa. Em alguns dos anos em que a data
da Festa coincidiu para católicos e ortodoxos ela foi agraciada com o dom dos
estigmas.
Não há como sermos
verdadeiramente cristãos e não nos entristecermos com a desunião entre nós e
mesmo dentro das Igrejas. É profundamente enternecedor saber que Jesus quando
já caminhava para sua morte pediu ao Pai exatamente nessa intenção: “que eles
sejam um, assim como somos um, para que o mundo creia”(5). Será que
Ele já pedia pelas dificuldades que enfrentaríamos ao longo da história?
E mais ainda, não pedia Ele por
algo que não podemos alcançar por nós mesmos, mas que somente o Pai pode
realizar?
Nesta Páscoa que será, com a
Graça de Deus, celebrada em comum entre católicos e ortodoxos e ainda no
conclave que se aproxima (6), temos novamente um chamado à unidade.
Dentro da Igreja e entre os cristãos. É hora de abandonar as armas do
pensamento superficial e das palavras vulgares e nos voltarmos humildemente
para o próprio coração, assumir nossa condição de pecadores e pedirmos perdão.
E nos colocarmos a serviço, não de nossos próprios caprichos, não dos nossos
pecados e fraquezas, mas de Cristo e de sua Igreja.
E há grandes sinais de esperança.
O dia da separação entre os católicos e os ortodoxos, 16 de julho, é o mesmo da
Festa de Nossa Senhora do Carmo, festa de uma ordem religiosa que nasceu no
oriente, na comunidade fundada pelo profeta Elias, e depois veio para o
ocidente.
Maria já quis deixar seu selo,
talvez afirmando que a vitória já foi conquistada, só nos é necessário seguir
confiantes.
Há ainda experiências belíssimas
como a Comunidade de Taizé (7), uma das maiores alegrias de minha
adolescência. Em 2017 se celebrarão ainda os 500 anos da Reforma Protestante e
será mais um tempo oportuno para refletirmos sobre a unidade da Igreja. O
presidente da Federação Mundial das Igrejas Luteranas propôs à Igreja Católica
um acordo sobre hospitalidade eucarística, como parte das celebrações de 2017(8).
A hospitalidade eucarística
significa que católicos poderiam comungar em igrejas luteranas e vice-versa.
Embora haja ainda inúmeros pontos teológicos para serem esclarecidos e este
seja o começo de um longo diálogo, o gesto é sem dúvida animador.
Um dos grandes legados de Bento
XVI é sabermos que a unidade entre os cristãos, a unidade dentro da Igreja e
mesmo a unidade dentro do coração de cada homem e mulher é fruto não de acordos
políticos ou de grandes ideologias, mas do mergulho na verdade que permeia e
transcende todos nós, no encontro com Deus, verdade plena, alma de minha alma,
diria Santo Agostinho.
Mas devemos olhar com coragem
para a clareza dessa luz, encarando também nossas realidades mais sombrias, como
o pecado e a dúvida, pois do contrário, não seria uma legitima busca da verdade,
mas mero sentimentalismo e auto justificação.
Quanto mais nos aproximarmos de
Cristo, mais nos aproximaremos entre nós. Quanto mais mergulharmos no
conhecimento da Igreja, do qual todos os cristãos são herdeiros legítimos, aquela
que precedeu a época das guerras e das desuniões, tanto mais todos nós
estaremos unidos, ao redor da mesma mesa. E felizes.
E descobriremos, com o coração
leve, que nunca deixamos, e nunca deixaremos, de ser uma só família.
(1) Em
que pesem considerações sobre a interpretação do Vaticano II na reportagem do
Estadão, a respeito da relação de Bento XVI com o movimento ecumênico, temos:
(3) Sobre
a compreensão Ortodoxa a respeito da data da Páscoa
(4) O
site é de qualidade ruim, provavelmente por conta dos poucos recursos e falta
de conhecimento sobre internet por parte de Myrna, peço que se dediquem a ler apenas
seu conteúdo:
(5) Jo
17,21
(6) Bento
XVI apenas anunciou sua abdicação, é improvável que não o faça, mas cabe aqui
uma ressalva para a eventualidade de mudar sua posição.
(8) http://www.patheos.com/blogs/deaconsbench/2010/12/lutheran-leader-hopes-for-eucharistic-hospitality-with-catholics/