Por um novo país, começando do começo.
Já passou algum tempo do começo da polêmica sobre a comentarista do SBT, Rachel Sherazade, mas acho que ainda vale a pena aproveitar o assunto, para uma conversa de maturação mais longa, sobre a questão da violência em nosso país.
Entre os diversos artigos que surgiram no calor do momento, vale apena ler o do Contardo Caligaris na Folha (1). No artigo, Calligaris fala da inexistência de uma “comunidade de destino”, um sentimento comum de país, como a principal causa para a violência endêmica que nos assola e que tanto tem assolado nossos noticiários. Segundo ele “habitamos uma zona de tiro livre” e entre nós a “coisa pública simplesmente não vingou”.
Seguindo esse raciocínio, não é difícil concluir que linchadores e bandidos são resultado da mesma conta, apenas com o sinal invertido.
Bem, todos nós, ou pelo menos a grande maioria de nós, compartilha o sentimento de que o Estado brasileiro simplesmente não existe. O que existe é um arremedo de Estado, uma espécie de força policial que garante um país para poucos.
E não sei o que é pior: ser um país para poucos ou ser um país em que muitos querem fazer parte desses poucos.
Entretanto, a questão é mais profunda. Afinal, como que diante do constrangimento de vermos condomínios encastelados em frente a favelas e cidades com pouquíssima estrutura – basta lembra que no Rio de Janeiro bueiros explodiam - ainda temos este sentimento de que somos brasileiros, de que algo efetivamente nos une? Como isso é possível?
Embora nosso país não seja um mar de rosas cultural, é inegável que aqui a assimilação de outras culturas de se deu de forma muito mais positiva que em outros lugares. Pedro Morandé aponta que o surgimento da América Latina se deu em meio a um projeto com elementos profundamente populares e, inclusive, voltado para a população mais pobre.
A cidade de São Paulo, por exemplo, surgiu a partir da experiência de um colégio jesuíta, uma escola para indígenas, onde se ensinava em Tupi. O chimarrão é uma invenção dos jesuítas para os indígenas da região dos pampas. São iniciativas que, ainda que não contem com a ideia de uma sociedade pluricultural como pensamos hoje, já nasceram com o intuito de incorporar, abraçar, a cultura do outro.
É verdade que via de regra os santos são uma pequena minoria, e aqui o pleonasmo é proposital, mas em alguns momentos da história e entre alguns grupos não raro os bons formaram um número considerável, que não conseguimos notar, tão acostumados que estamos a olharmos somente para nós mesmos.
Este processo iniciado no trabalho dos jesuítas será rompido no período do Marquês de Pombal com a supressão das ordens religiosas no Brasil em 1759. Este processo seria emblemático de duas tendências que marcariam nossa história, por um lado a convivência de diferentes culturas abraçadas pelo mesmo ideal religioso e de outro o surgimento de uma elite em oposição a este modelo, ou pelo menos ao que entendia dele.
Olhando para o mundo lá fora, vemos que os primeiros imigrantes que chegaram às treze colônias que viriam a ser os EUA acreditavam estar cruzando o Atlântico da mesma forma que o povo de Israel cruzou o mar vermelho, deixando uma terra de escravidão para uma de prosperidade, que seria marcada pela liberdade religiosa. No século III a.C o imperador Ashoka, depois de convertido ao Budismo, unificou o subcontinente indiano, construiu mosteiros e decretou uma era de paz, chegando até a enviar missionários para outros países, uma história que tem alguns aspectos semelhantes às de vários reis católicos.
Tendo em mente essas experiências penso que é difícil falar do surgimento de uma nação sem um ideal que nos abrace inteiramente como pessoas, que nos projete para o infinito.
Simplesmente nos faltariam motivação e forças para um ideal tão grande.
Na nossa brasilidade acredito que já temos elementos para um ideal mais ousado. A alegria da diversidade cultural é sem dúvida um marco positivo nosso. Nenhum outro povo colocaria sushi dentro de uma churrascaria. A nossa tolerância com os fracassados, algo notado em uma excelente palestra do Prof. Dr. Alfredo Behrens que assisti recentemente. Povos ditos avançados não dão espaço para “perdedores”. Já aqui, infelizes nos negócios e desafortunados em geral ainda são queridos e estimados por suas famílias e amigos.
E imagino que se conseguirmos estabelecer no nosso pedaço de chão a justiça, talvez mais do que queridos, os fracassados possam também vir a ser redimidos. Um farol para um mundo que cada vez mais exclui fracos e perdedores. Os portadores de doenças incuráveis, os que foram mal nos negócios, os pobres, as crianças por nascer. São perdedores que atrapalham a felicidade de nosso mundo perfeito e devem ser descartados.
A doçura, o cuidado com os mais fracos. As periferias existenciais naturalmente atraem o olhar dos brasileiros. Os pobres, os deprimidos, os tristes, todos eles despertam nossas pesquisas e preocupações. Um povo com uma inclinação natural assim pode ir muito longe com um pouco de força. E a doçura, em nenhum lugar do mundo se ri ou sorri tanto, nem na África, de quem herdamos o sorriso largo e a musicalidade.
E contamos ainda com a fé que herdamos daqueles que primeiro vieram aqui.
Precisamos acreditar. Com um pouco de força e organização podemos avançar. Já temos um povo, só nos falta construir o país. Mas esta é a parte mais fácil. A mais difícil parece que os jesuítas já deixaram encaminhada.
(1) http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2014/02/1414812-linchadores-e-bandidos.shtml