Sobre as recentes polêmicas com o Comitê dos Direitos da Criança e o Comitê sobre Tortura da ONU.
Poucas pessoas têm acompanhado as recentes disputas na ONU em torno do Vaticano. Em janeiro de 2014 o Vaticano recebeu um relatório do Comitê dos Direitos das Crianças criticando a condução dos casos de pedofilia envolvendo o clero católico[1].
Nada de se estranhar à primeira vista, afinal os escândalos de fato existiram e é justo levantar considerações sobre a condução dos casos. Os relatórios fazem parte de um pacto assinado pelo Vaticano. Além disso, todos os países do mundo recebem relatórios de comitês da ONU denunciando erro de conduta em temas de direitos humanos.
A polêmica começa de verdade no ponto em que o relatório sugere que a Igreja mude sua doutrina com relação à família, o aborto e etc, dando a entender que a doutrina católica é em certo sentido causa dos escândalos. Bem, uma coisa simplesmente não tem nada a ver com a outra.
Este mês o representante do Vaticano no Comitê contra a Tortura ouviu que a Igreja pratica tortura com sua doutrina sobre o aborto. D. Tomasi respondeu firme, apontando que “o aborto em fase avançada constitui tortura” e ainda que “a Igreja condena a tortura de qualquer pessoa, inclusive daqueles que são torturados e assassinados antes de nascer”.
Afinal, uma coisa simplesmente não tem nada a ver com a outra e grupos de pressão dentro da ONU colocaram o aborto no meio de novo, totalmente fora de contexto.
Afinal, uma coisa simplesmente não tem nada a ver com a outra e grupos de pressão dentro da ONU colocaram o aborto no meio de novo, totalmente fora de contexto.
E há ainda neste momento um movimento dentro da ONU pedindo que o Vaticano perca o seu status de estado observador, perdendo o direito à palavra em algumas comissões da ONU, já que o direito a voto o Vaticano não tem. Uma explanação sobre os direitos do Vaticano na ONU pode ser vista aqui[2].
É interessante ver o vídeo da campanha, das “Católicas pelo Direito de Decidir”, com direito a bonequinho do papa e tudo mais, muito sério e bem fundamentado (e espero que tenham entendido a ironia). O argumento principal da campanha é que o Vaticano evita que temas como “aborto”, “educação sexual” e eutanásia sejam aprovados fazendo lobby junto a países pequenos e conservadores que acabam votando contra. Mas aí eu me pergunto: as minorias só valem quando votam a favor?
No caso do relatório sobre abuso de menores, o Vaticano se defendeu dizendo que não tem jurisdição sobre as Igrejas pelo mundo, e que cabe aos governos locais investigar e punir crimes dessa natureza, além de apontar todos seus esforços nos sentido de coibir estes crimes. Bem, obviamente é verdade, mas em um mundo em que o Greenpeace, por exemplo, cobra de grandes multinacionais com sede nos EUA e na Europa que suas práticas sejam sustentáveis na extração de matérias primas no mundo inteiro, é difícil sustentar esse argumento.
Já com relação à participação do Vaticano na ONU, entendo que o primeiro passo é não jogar a ONU inteira nessa discussão. A polêmica gira em torno de duas ou três agências ligadas à campanha pró-aborto feita por grandes ongs e fundações internacionais como Planned Parenthood e as fundações Ford e Rockfeller. O outro ponto é não agir com uma inacreditável ingenuidade e não ver neste movimento coordenado um lobby de fundo que vê a Igreja como um adversário político a ser eliminado. A esse respeito vale a pena ver o depoimento de Amparo Medina que chegou a trabalhar na UNFPA do Equador e depois teve um surpreendente retorno ao catolicismo[3].
Mas com relação ao tema específico da participação do Vaticano da ONU, o que devemos pensar? É justo a Igreja se fazer presente na ONU ocupando uma vaga semelhante à de um país e utilizar este espaço a seu favor? Ou deveria retirar-se, marcando uma distinção clara entre religião e política, atuando exclusivamente em outra dimensão social?
O primeiro passo é observar o mandato, o objetivo em cima do qual é fundada a ONU, que é a manutenção da paz e da segurança internacional. Assim, a ONU pode se perguntar: o Vaticano, a Igreja, é um parceiro importante para a construção da paz mundial? Eu penso que a resposta é um objetivo sim, pela sua situação ímpar no mundo como única organização religiosa com uma hierarquia definida e uma doutrina clara, além de ser a instituição mais antiga do planeta em funcionamento e ter influenciado de alguma maneira a vida de pelo menos 1,4 bi das pessoas que estão vivas hoje sobre a Terra. É uma voz representativa na humanidade? Sim. Então por que não ouvi-la?
Com relação ao status sui generis é importante lembrar que a ONU não possui soberania em si mesma, mas é resultado de um acordo internacional, é uma aliança política de nações soberanas que podem deliberar como quiserem dentro da proposta inicial da organização. Além de que, sui generis por sui generis, a ONU considera Taiwan parte da China, reconheceu países que ainda carecem de reconhecimento internacional como a Autoridade Palestina ou o Saara Ocidental e tem como objetivo ser uma instituição para salvaguardar a paz e a segurança no mundo inteiro, mas onde quem vota para decidir sobre o uso das armas são apenas cinco países.
Se o ponto fosse democracia e legitimidade, a última linha é muito mais importante do que os pobres 1 km2 do Vaticano.
Essa discussão já foi feita em 1964 quando a ONU acolheu o Vaticano como um estado observador permanente, ou seja, os estados membros já deliberaram a respeito e confirmaram novamente o status do Vaticano em 2004. Sejamos objetivos, o ponto é que alguns grupos não gostam de nossas opiniões. E ao invés de vencer nos argumentos, querem nos colocar para fora.
[1]http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/01/vaticano-admite-existencia-de-autores-de-abusos-contra-criancas-no-clero.html
[2] http://www.holyseemission.org/about/participation-of-the-holy-see-in-the-un.aspx
http://www.religionenlibertad.com/articulo_imprimir.asp?idarticulo=28988