Valores, votos e anseio de participação
Por esses dias, participando de uma reunião de trabalho, um colega reclamou que uma certa decisão que foi tomada deveria ter sido feita de forma democrática e não tinha sido assim por que, aparentemente, o gestor estava trazendo a decisão já pronta. Essa questão especificamente tinha uma série de pormenores que não cabem aqui discutir, como fato de estar presente um grupo de representantes dos demais e etc. Não vem ao caso. O ponto é que diversas vezes, talvez por trabalhar com questões sociais, já vi alguém se manifestar de maneira semelhante.
Mas o que é uma decisão democrática? Se todos têm o direito a palavra, mas eu falo por cima da opinião do outro para não seja escutada, seria isso democrático? Seria democrático levantar na reunião bem na hora em que vai falar a pessoa de que discordo? Seria democrático escutar a opinião de alguém e não contra argumentar em público, mas pelos cantos, manipulando a decisão do responsável, minando um argumento honesto que foi colocado para todos de forma aberta? Ou, o que para mim é pior, ouvir mas ignorar a opinião de alguém, aguardando para ver o que o meu grupo de amigos vai dizer e depois manifestar uma opinião “política” de apoio, mas não uma reflexão sincera sobre os pontos trazidos?
Por diversas situações como as de cima, que já presenciei nos mais diversos grupos de que participei, foi que percebi que uma assembleia, todos reunidos e em tese decidindo juntos, pode, na verdade, ser uma experiência muito antidemocrática.
E que apegar-se à forma, decidir todos juntos, ou realizar votações, pode esconder pelo menos dois objetivos não democráticos. O primeiro deles é o desejo de influenciar as decisões de acordo com as afinidades e preferências pessoais, e não necessariamente para achar a melhor solução. E o outro, um certo racionalismo, que precisa tornar tangíveis todas as coisas, colocar as regras excessivamente claras, uma atenção exagerada à fórmula, como se essa fosse capaz de garantir um ambiente democrático.
Sem dúvida que as formas são importantes, e que podem ajudar a evitar desvios antidemocráticos, mas são insuficientes e não são essenciais.
Por que no fundo, a democracia, essa palavra que utilizamos para expressar o ideal de sociedade que compartilhamos, não é tanto uma forma, mas um conjunto de valores. E os valores devem ser defendidos e promovidos a todo tempo, não são tangíveis e exigem um esforço constante, um pensamento constante, que aqueles que se apoiam nas formas, ou desconhecem ou não querem fazer.
E no que consistem os valores democráticos? Penso que podemos resumir esses valores em um ato de escuta profunda. Uma escuta que nos faz levar em consideração as necessidades uns dos outros, seus pontos de vista, suas convicções e que nos leva à ação para o bem comum. Uma escuta profunda em que nos deixamos desafiar pelas convicções e opiniões dos demais, na crença de que nas mais diversas situações há uma verdade, que deve ser buscada. E é antes de tudo uma atitude interior, de desejar realmente compreender aqueles com quem estamos trabalhando ou decidindo juntos.
E essa atitude de escuta profunda pode também resultar em reconhecer os limites uns dos outros, os limites do diálogo, e aceitá-los por um bem maior, tentando alcançar o máximo possível, e cada vez mais, o bem comum.
Do contrário, qualquer forma de tomada de decisão não passa de uma disputa de poder.
Trabalhando com organizações sociais foi quando tive algumas das experiências mais antidemocráticas da minha vida. Vi belos discursos e péssimas práticas. E na nossa época em que chamar alguém de antidemocrático para ser a nova tendência de destruição da honra pública, é bom ter isso em mente.
Quando os iluministas pensaram os princípios que dariam origem ao estado moderno, querendo ou não, se assentavam sobre uma série de valores católicos que herdaram da Idade Média. A igualdade e a liberdade pregadas pela Revolução Francesa são ecos distantes, e logo corrompidos, da igualdade dos homens diante de Deus e da liberdade no Espírito dos cristãos. Tanto que, num primeiro momento, os revolucionários não se atreveram a atacar de frente a Igreja, mas de acusá-la de hipocrisia e que seriam eles os verdadeiros portadores desses ideais. A fraternidade, por sua vez, foi logo guilhotinada. Vários autores em maior ou menor grau concordam com esse ponto, entre os que desfrutam de maior aceitação pública, talvez estejam Jacques Maritain (grande contribuidor para a criação dos direitos humanos pela ONU) e o filósofo Julian Marias, entre os que me vêm fácil à mente. No fundo, o que os revolucionários fizeram, ao menos num primeiro momento, não foi negar de todo o pensamento da Igreja Católica, mas se apresentar como uma espécie de verdadeira igreja.
Mas esses pensadores cometeram um erro fundamental. Montaigne, ao pensar a divisão dos poderes, a colocou em uma chave negativa, como uma forma de evitar abusos de poder. Mas o que move os governantes a agir bem? Um sistema que apenas não os faça agir mal é insuficiente...o que os fazia agir bem, ou ao menos de forma razoável sem descambar para o mais indiscreto egoísmo e luta por poder, era a fé católica, que ainda vivia nos costumes, nas mentalidades, na cultura...e na medida em que a sociedade abandona completamente sua fé católica, o que sobra? Sobram situações como a que vemos no Brasil de hoje, uma guerra total entre os três poderes, que me parece que Montaigne não tinha sequer imaginado.
É nesse sentido ainda que Plínio Correa de Oliveira, já nas primeiras décadas do século XX, previa uma profunda crise institucional devido à descristianização da sociedade, que para mim é exatamente o que vivemos hoje.
Estudando negócios sociais, é muito comum ler ecos desse debate, com autores que imaginam que a única forma possível de existência democrática seja em organizações em que a propriedade seja compartilhada. Não percebem que a propriedade pode ser partilhada apenas nominalmente e que se a propriedade é importante, a posse o é ainda mais. Regimes socialistas, seja em Estados Socialistas, seja em cooperativas dentro de economias de mercado, podem abolir a propriedade, mas não podem abolir a posse, o controle dos recursos terminará por ser exercido por um número relativamente reduzido de pessoas, e esse princípio vale até mesmo para um CEO de uma organização com centenas de acionistas, pois por mais donos que uma empresa tenha, a tomada de decisão será de uns poucos com enorme influência.
Dito isso, todos concordamos que não deve haver uma desigualdade tal que impeça as pessoas de viverem com dignidade, ou que ofereça a um grupo o controle sobre a vida de outro. Não estamos discutindo aqui que é imoral deixar os mais pobres morrerem à míngua quando se pode socorrê-los, isto é evidente.
Há situações em que o voto é simplesmente impraticável. Decisões realizadas por entidades de classe que impactam toda a sociedade civil, como o CRM dos médicos ou o CREA dos engenheiros, são tomadas por pequenas aristocracias de técnicos, ainda que votem em suas reuniões. São especialistas, acadêmicos que decidem e está na natureza das coisas ser assim. Não há como tornar o CRM mais democrático para o grande público, colocar a política no lugar da técnica resulta em barbárie, diria, com razão, o filósofo ateu Sponville.
Dessa maneira, embora os mecanismos de voto e participação sejam importantes, e não me passe pela cabeça discutir a importância e o lugar deles na sociedade contemporânea, no fundo, não são eles que constroem e nem os que garantem uma sociedade democrática. O que a garante, são os valores democráticos, que são, na verdade, valores católicos, embora sejam hoje apresentados em versões corrompidas do que foram e, mais ainda, do esplendor que podem adquirir no futuro. O que queremos de fato não é votar, mas sermos escutados e compreendidos. Agora, se o que queremos é somente nos manifestar, sem nenhuma preocupação com o bem comum, seria melhor que não votássemos.
E nesse país e nesse mundo tão tumultuado em que vivemos é bom olharmos para belas experiências democráticas. E eu as encontrei no que para mim era o lugar mais improvável quando era bem mais novo: na Santa Igreja Católica.
A regra de São Bento, talvez a principal regra de vida do Ocidente, do século VI, apontava formas de ação que até hoje seriam inovações profundas.
Ela previa, por exemplo, que nas decisões mais importantes até mesmo as crianças, havia crianças que viviam nos mosteiros para serem educadas nessa época, deveriam ser chamadas. São Bento diz na regra, justificando esse ponto, que é comum Deus revelar sua vontade por meio dos mais novos. Devia ser um quadro belíssimo ver aqueles monges sóbrios e sérios, que abandonaram todos os bens terrenos para dedicar à contemplação de Deus, sentados próximos às crianças, se preparando para conversar sobre um tema importante, logo depois de terem rezado a Deus para que os iluminasse.
Para se ter uma ideia da importância dos monges católicos na nossa história, as câmaras do Palácio de Westminster, sede do parlamento inglês, foram feitas semelhantes ao capítulo de um mosteiro, que é o lugar onde os monges se reúnem para votar.
Outro ponto importante da regra beneditina é que ela prevê que os superiores procurem ouvir e compreender a necessidades daqueles que lhe estão abaixo e que estes exponham, em paz, suas questões em relação às ordens dos superiores. Mas sem revolta, confiando que se o superior se mostrar intransigente, em última instância Deus conduzirá toda a situação da melhor forma.
E não é preciso dizer que os abades, os superiores dos mosteiros, eram eleitos. E esta é, ainda hoje, a regra de milhares de monges no mundo.
Não é assim que queremos todos viver?