E outras tragédias do Ocidente
A semana passada assistiu
intensos debate em todo o mundo, marchas de multidões pela liberdade de
expressão, marchas menores contra a presença de estrangeiros na Europa e as análises
da CNN sobre o que deu errado na vigilância contra os terroristas, como se tudo
fosse apenas um problema técnico que pudesse ser evitado.
Aos poucos parece que emergiu um
consenso, pelo menos dentro do grupo social de que faço parte, que penso poder
ser expresso mais ou menos assim:
“Se é pela liberdade de expressão
e contra atos de terrorismo de qualquer natureza, Je sui Charlie, agora, se é pelo conteúdo da revista, Je ne suis pas Charlie” . O que eu
particularmente acho de bastante bom senso.
Mas o que penso que ficou
faltando neste debate, e ainda falta, é realmente sairmos do impasse em que se
encontra o Ocidente todo em termos de mindset
e nos convencermos de que uma solução tecnocrática não nos salvará.
Alguns defendem que a solução trata de uma maior sofisticação da polícia, prevendo os casos de terrorismo, o que,
convenhamos, é simplesmente impossível, embora seja razoável sempre aperfeiçoar
as técnicas de segurança. Outros chegaram a cogitar alguma forma de censura, em
nome da liberdade religiosa.
De um lado a liberdade, do outro
a igualdade.
Se a Revolução Francesa não
tivesse guilhotinado a fraternidade, talvez tivesse algo a dizer para o mundo.
O problema das soluções acima, e
que de uma forma ou de outra é onde está polarizado o debate, é que enxergam
somente uma relação indivíduo-estado. E não entre pessoas. Não se pensa a
respeito da capacidade de se convencer (e ser convencido), da capacidade de
autorregulação dos grupos sociais, ou do diálogo entre as diversas comunidades
de fato que compõe qualquer sociedade.
E qualquer convite à
automoderação em nome de um bem maior é considerado uma afronta à liberdade
individual. Mas sem a fraternidade, de que nos vale a liberdade?
A liberdade em si é incapaz de
nos tornar felizes. É um bem, por assim dizer, necessário, mas insuficiente, só
vale enquanto meio para que eu possa viver da forma que me realiza plenamente
enquanto pessoa.
Mas onde encontrar energia
suficiente para ir ao encontro do outro, dessa comunidade que me agride? E que
me agride verdadeiramente, afinal, pensar que militantes jihadistas são apenas
um grupo de incompreendidos é no mínimo muita, mas muita, ingenuidade.
Acredito que a parcela da
sociedade a que pertenço, a dos homens e mulheres que reencontraram, ou
descobriram de fato, a fé cristã nas últimas décadas, não pode se omitir de
contribuir no debate oferecendo uma resposta à altura da sua esperança. À
altura do tesouro escondido que encontraram, ainda que muitos, olhando de
longe, ou com má fé, pensem não passar de mais uma daquelas bijouterias antigas
que depois se descobriram falsas.
Entre junho e julho de 1219, São
Francisco de Assis viajou até Damieta, no Egito, onde se travava uma das
cruzadas, contra os sarracenos. Depois de pregar aos cruzados, ultrapassou a
linha de batalha e se deixou fazer prisioneiro. São Francisco foi
levado à presença do sultão, ao qual tentou convencer da fé cristã e a quem
pediu por um tratamento digno para os prisioneiros cristãos.
Pela mesma época, missionários
franciscanos foram ao Marroccos pregar, sendo por fim mortos.
Francisco não conseguiu convencer
o sultão. E os franciscanos morreram no Marrocos.
Mas, quando o corpo dos primeiros
mártires franciscanos passou por Portugal no caminho para Assis, um jovem
português, chamado Fernando, tomado de comoção, decidiu se juntar aos
franciscanos. Este jovem depois passou a ser chamado Antônio, Santo Antônio,
tão presente no folclore brasileiro quanto desconhecido pelo homem que é.
Esses mortos nos falam. Pois
estão mais vivos do que nós. O sacrifício de Francisco não foi em vão.
O nome de Francisco, e de seus
autênticos seguidores, é, há quase 800 anos, uma bandeira de paz, reconciliação
e verdade. E desde o seu surgimento sustentaram os valores da sociedade em
momentos dos mais difíceis.
Esses homens são pilares de uma
civilização fundada no perdão, na paz e no respeito ao próximo, ainda quando este
está distante. Uma civilização fundada também no amor ao belo, ao verdadeiro,
na coragem e na ousadia.
É disto que precisamos.
Precisamos de novos desses franciscanos. Homens e mulheres dispostos a viver
até o extremo por uma verdadeira vida. E não por uma caricatura dela.